Modelo para armar

.“Quisiera un castillo sangriento”, había dicho el comensal gordo.

(Cortázar)

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Por Sérgio Baierle:

“Comecemos pelo nó górdio da crise política para posteriormente entendê-la desde uma perspectiva mais estrutural. No momento em que escrevo, segunda semana de abril de 2018, a menos de seis meses das eleições presidenciais previstas para outubro, temos um candidato forte à esquerda (Lula, com 31% das intenções de voto, o dobro do segundo colocado), mas sem programa de governo propriamente dito. Já à direita, temos uma agenda política clara, o austericídio, dissimulado pela narrativa do combate à corrupção e à violência, mas sem candidato com base eleitoral capaz de sustentar a destruição progressiva de garantias sociais.”

 

Diante da celeridade com que se aprofunda a crise brasileira, num contexto geopolítico internacional ainda mais conturbado, proponho avaliar os diferentes ângulos de investigação da realidade como um modelo para armar, onde um conjunto de paradoxos, aparentes ou não, turvam a percepção da realidade e comprometem as estratégias de ação. Com uma opinião pública imantada pela cena política imediata, carregada de discrepantes certezas absolutas, ódios recíprocos e opções desesperadas frente ao fim da Nova República (1985-2016), inaugurou-se uma etapa de golpismos e profundas alterações na estrutura e no funcionamento dos poderes do Estado, da regulação econômica e das políticas sociais, afetando diretamente os setores mais pobres da população. Sem nenhuma pretensão de imparcialidade, convido o leitor a refletir sobre as armadilhas do imediatismo, a partir de um leque de questões envolvendo passado, presente e futuro.

 

Comecemos pelo nó górdio da crise política para posteriormente entendê-la desde uma perspectiva mais estrutural. No momento em que escrevo, segunda semana de abril de 2018, a menos de seis meses das eleições presidenciais previstas para outubro, temos um candidato forte à esquerda (Lula, com 31% das intenções de voto, o dobro do segundo colocado), mas sem programa de governo propriamente dito. Já à direita, temos uma agenda política clara, o austericídio, dissimulado pela narrativa do combate à corrupção e à violência, mas sem candidato com base eleitoral capaz de sustentar a destruição progressiva de garantias sociais. No momento presente, as principais forças políticas à esquerda encontram-se aglutinadas diante de uma sinuca de bico, salvar Lula, atualmente preso em Curitiba. Os dois movimentos, à direita e à esquerda coincidem no deslocamento da disputa política do campo eleitoral para o jurídico-midiático.

 

Independentemente da tradição politicamente conservadora do judiciário brasileiro, considerando-se que a transição da ditadura militar para a democracia nos anos 80 se deu de forma lenta e gradual, sem alteração nos quadros superiores da burocracia estatal, a não ser por aposentadoria ou falecimento (ocorrendo ainda em 2015 disputa pelo aumento da idade máxima para aposentadoria compulsória no STF), o modus operandi do judiciário não parte da evidência, mas da acusação e seu processamento ou não, tendo por base a responsabilização individual de caráter essencialmente moral. Por exemplo, no Massacre do Carandiru, em 1992, foram executados pela polícia militar de São Paulo 111 detentos naquele presídio. Nenhum dos policiais que perpetraram o massacre foi condenado, pois segundo o julgamento à época, era impossível identificar a dose de culpa individual de cada um. Ao tentar incriminar algo muito mais amplo como um sistema de governo (presidencialismo de coalizão) e o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, com o próprio judiciário se auto autorizando a editar leis, a operação lava-jato operada numa parceria entre integrantes da polícia federal e do judiciário, resvalou para o estabelecimento de um seletivo tribunal de exceção.

 

Enquanto as conduções coercitivas e as prisões televisionadas distraem a audiência, abre-se espaço para a recriação de um quarto poder, ainda indefinido. No Brasil Imperial havia o Poder Moderador do imperador, na ditadura o papel foi exercido pelas Forças Armadas, na pós-democracia atual ainda não está claro quem assumirá a mão por dentro do fantoche. De qualquer modo, a democracia brasileira está destruída e o futuro político próximo é absolutamente incerto. A fúria restauradora conservadora liquidou com seus próprios candidatos, gerando um hiato ainda não solucionado entre dominação econômica neoliberal e governo minimamente legítimo (como o de Macri na Argentina, por exemplo).

 

Não por acaso, a partir do início de 2018, as forças militares passaram a interferir mais diretamente na disputa política, com o pretexto de combater a violência no Rio, mas tolerando manifestações de militares da reserva, como a do general da reserva Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, aventando possibilidade de intervenção militar caso o Supremo Tribunal Federal concedesse habeas corpus a Lula. Igualmente, o Sindicato dos Delegados da Polícia Federal passou a defender sua transferência para uma unidade militar.

 

A prisão de Lula acendeu um sinal de alerta sobre a evolução do golpe jurídico-parlamentar e o risco de que o tribunal de exceção a que deu lugar se amplie para outros espaços. Entretanto, salvar Lula não é um programa de governo! Pode ser estratégia de defesa e aglutinação de forças, mas nada diz sobre como enfrentar o austericídio que avança incólume sobre a sociedade e a inutilidade de fazer mais do mesmo. Nada diz sobre o falhanço do neodesenvolvimentismo em ressuscitar uma burguesia nacional num contexto de hegemonia do capital financeiro internacional. Nada diz sobre a guerra aos “vagabundos”[1] e a disputa que se dá sobre o que ainda restará do Estado após o enésimo ajuste das contas públicas.

 

Embora ilegítimo, frágil e impopular, o governo interino de Temer talvez tenha configurado o ideal possível para o neoliberalismo (the designated survival). Refém do capital financeiro, da mídia, do judiciário e da burocracia estatal. Sem compromisso com o eleitorado, dedicou-se a assegurar uma mesquinha maioria parlamentar de modo a levar adiante um conjunto de reformas diretamente regressivas, como a reforma trabalhista, a autonomia do Banco Central, o esvaziamento do BNDES (adeus projeto de país) e a prometida reforma previdenciária temporariamente adiada. É pouco provável que um governo assim submisso possa ressurgir como resultado de novas eleições, assim como é inimaginável uma submissa ditadura militar. Mas o que esperar de um governo eleito por uma nova frente popular encabeçada pelo PT? Talvez os silêncios falem mais que os protestos!

 

Consolidada a hegemonia do capital financeiro nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), as direções do Banco Central, todas referendadas pelos grandes bancos no Brasil, atravessaram as duas últimas décadas resistindo duramente a alterações na política monetária. Apesar de toda a guerra política em torno da crise econômica, não deixa de ser curioso que o Presidente do Banco Central nas gestões de Lula tenha vindo a ser o Ministro da Fazenda da gestão Temer. Enquanto bancos americanos e europeus viam derreter seus ativos, Itaú, BB, Bradesco, Santander e CEF apresentaram lucro de 244 bilhões entre 2014 e 2017, maior que o lucro de 56 bilhões de reais das 307 grandes empresas não-financeiras (Petrobrás incluída). Não obstante estes bancos terem tomado calotes de 360 bilhões de reais desde 2014 (cujo risco foi obviamente socializado via aumento estratosférico das taxas de juros no varejo) [2].

 

Essa relativa Pax Financeira, que aparentemente tornou os grandes bancos no Brasil inoxidáveis, expressa o peso da financeirização na economia e a progressiva perda de autonomia política dos governos e mais recentemente de estruturas da área econômica do próprio Estado. Francisco de Oliveira reconhecia, já em 2006[3], que a financeirização “tira a autonomia de decisões dos governos nacionais”. Ela tornou-se, de certa forma, o soberano oculto da política, que obviamente não pode considerar-se democrático, a não ser no restrito âmbito dos algoritmos de uma democracia direta do capital.

 

Num país em que para uma inflação anual atual de 2,68% (março/18), os juros praticados no crédito pessoal giravam ao redor de 6% ao mês, não é difícil entender como 40,5% da população adulta se encontre negativada (março, 2018), ou seja, inadimplente (61,7 milhões de pessoas entre 18 e 95 anos – Dados SPC/CNDL). Qual o futuro dessa lógica, sabendo-se que o desemprego atinge 12,7 milhões (12,2% da população econômica ativa), que mais da metade dos atualmente empregados trabalha no setor informal e que os novos empregos são principalmente como trabalhadores sem carteira do trabalho ou por conta própria, o que fez com que 7,3 milhões tenham desistido de procurar emprego?

 

Enquanto o boom das commodities permitiu sustentar a conciliação entre o tripé de ajuste neoliberal herdado dos governos Fernando Henrique Cardoso – 1995/2002 (superávit primário, metas de inflação e câmbio limitadamente flutuante), o Brasil, pode promover nas gestões do PT um conjunto de medidas sociais que permitiram reduzir os níveis de pobreza, ampliar o acesso à saúde e à educação, bem como aumentar a renda do trabalho e o nível de emprego. O Brasil parecia ter redescoberto a América, só que não. Lá no fim dos anos 80 e início dos anos 90, As políticas de participação popular típicas das administrações municipais do PT e do próprio MDB (anos 80 e 90), que partiam da participação popular para inverter prioridades na gestão do orçamento, promovendo investimentos nas regiões mais carentes de centenas de cidades, foram progressivamente perdendo relevância a partir da virada do milênio, diante de ações macroeconômicas federais nas áreas sociais e de infraestrutura. O protagonismo cidadão das experiências de participação popular foi gradativamente cedendo lugar à gestão da pobreza. A avalanche de programas governamentais parecia produzir uma nova classe média, caracterizando a integração das classes subalternas no mercado capitalista e suas receitas de empreendedorismo para todos.

 

A resistência do governo do Dilma, no seu primeiro mandato (2011-2014), em sucumbir a uma alternativa recessiva para enfrentar as consequências da crise de 2008 foi tolerada até 2013, quando o aumento da inflação e a redução do superávit primário enfureceu definitivamente o mainstream econômico-midiático, a ponto de Dilma ter sido obrigada a um desmentido público por supostamente tem afirmado em encontro em Durban “sem contra combate à inflação com redução de crescimento”[4]. A segunda gestão de Dilma na presidência (2015-meados de 2016) iniciou já sob o mantra do ajuste fiscal reclamado pelo “mercado”, ao contrário do que propunha o programa de governo. O Mundial de Futebol no Brasil em 2014, previsto originalmente para coroar o suposto capitalismo social brasileiro, teve um gosto amargo e representou a queima do último cartucho do modelo.  Injeções de crédito e isenções fiscais já não conseguiam mais compensar a queda nas taxas de lucro das grandes empresas. O desequilíbrio macroeconômico arriscava tornava-se insustentável do ponto de vista do grande capital operando no país (Vide análises de Michael Roberts: [5a], [5b], [5c], [5d]).

 

Aqui escancarou-se a cizânia política, tanto internamente, entre as forças que haviam apoiado a Frente Popular encabeçada pelo PT, quanto externamente, no âmbito do pacto fundador da Nova República. A indistinção entre o programa de ajuste efetivamente adotado por Dilma no segundo mandato e o programa proposto pela oposição desagradou a todos, seja pelo exagero, seja pela suposta timidez, revelando os limites de uma democracia destituída de poder real. A questão que fica e que deveria ser a pauta número da agenda à esquerda é qual o sentido de participar de eleições onde a soberania democrática não mais existe? Como propor sequer um esboço de social e/ou neodesenvolvimentismo quando as instituições públicas de formulação e financiamento de políticas foram ou estão sendo privatizadas, dessubstanciadas ou extintas?

 

À direita, a questão é o costumeiro otimismo cruel típico das classes médias, acreditar que serão salvas por aquilo que na verdade as está liquidando. O país não cresce porque existe corrupção, desperdício de recursos, gastança com vagabundos, etc. Aí entra o tradicional argumento de que a austeridade permitirá recuperar a economia e num futuro próximo relançar um novo ciclo de prosperidade, o que é uma falácia. Como mostra Eleutério Prado, na comparação entre Brasil e Grécia, (…) no capitalismo, a valorização do valor é o verdadeiro fim da produção. E no capitalismo dominado pela finança a valorização do capital fictício tem prioridade em relação à valorização do capital real, do capital que comanda a produção de valor e de mais-valor. (…) A tentativa de salvar o capital fictício, isto é, o esforço para impedir o calote das dívidas tende então a conduzir a economia capitalista à depressão, pois ele agrava fortemente a saúde financeira das empresas e das famílias. O calote – ainda que apareça para o pensamento liberal como um delito cometido por pessoas irresponsáveis – é, de fato, uma decorrência necessária da desmedida anterior do próprio capital.” [6]

 

O dilema é que, por um lado, diferentemente da quebra da Bolsa de Nova York em 1929, as dimensões adquiridas capital fictício e a sua internacionalização impedem uma “eutanásia dos rentistas”, pelo risco de reduzir a cinzas o próprio capitalismo. Por outro lado, a contínua expansão do capital fictício não se dá por uma suposta ganância insaciável dos rentistas, mas pela insuficiência na geração de valor proporcionalmente aos capitais investidos na sequência da terceira revolução industrial. Em algum momento o desastre será inevitável, mas os pesos sociais no inventário de perdas e danos serão obviamente seletivos.

 

A chamada esquerda brasileira encontra-se numa camisa de onze varas. Se é certo que uma união dos distintos partidos e movimentos sociais aumentaria as chances de um sucesso eleitoral, também é certo que voltaria a prevalecer o idílio de uma renovada social-democracia, com a garantia de direitos e a volta do pleno emprego, do justo salário, do trabalho efetivamente produtivo e do acesso ao consumo. Esse idílio, como vimos, resultou inviável sob o totalitarismo do mercado. Como diria Robert Kurz, não há Leviatã que vos salve[7]. Uma outra agenda, na minha opinião, só poderia ter dois sentidos: (a) Lutar contra o avanço da barbárie social, impedindo a desconstituição de direitos e garantias constitucionais e aumentando a proteção aos não rentáveis; (b) Retomar o acúmulo de experiências alternativas das últimas décadas para construir uma plataforma de lutas sociais rumo a uma sociedade pós-capitalista, onde a vida não seja alienada pela extração de mais valor. Até porque o eixo central da crise capitalista atual se encontra justamente na valorização insuficiente do capital e no recorrente recurso ao endividamento mundial através da emissão de dinheiro fictício, que já corresponde a 318% do PIB mundial (alcançando US $ 247 trilhões no primeiro trimestre de 2018).

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Entende-se aqui por pós-capitalismo o colapso geometricamente progressivo da sociedade do valor e da espetacularização de seus pressupostos econômicos, jurídico-políticos, sociais e ambientais. O que abre espaço tanto para uma guerra de todos contra todos, quanto para novos idílios meramente tópicos, tipo a defesa de uma economia circular ou da sociedade com custo marginal zero. Mas como mostram Lohoff e Trenkle, “há apenas uma opção diante da desvalorização catastrófica do capital: a desvalorização emancipatória da produção social da riqueza”[8].

 

Notas:

[1] Guerra aos “vagabundos”: sobre os fundamentos sociais da militarização em curso (Maurilio Lima Botelho – Blog da Boitempo).

[2] Crise coloca sob holofotes poder de mercado dos bancos – Por Talita Moreira e Fernando Torres (Valor Econômico, 21/03/2018).

[3] Chico de Oliveira: A política interna se tornou irrelevante.

[4] O neodesenvolvimentismo no Brasil: ideias econômicas sem poder político.

[5] Vide analises de Michael Roberts sobre o Brasil no Blog The Next Recession: [5a] Brazil: the carnival is over, [5b] Brazil: a dirty scum on polluted water, [5c] Brazil: at the end of its Temer?, e [5d] Brazil: the debt dilemma.

[6] Eleutério Prado, Impactos da austeridade.

[7] Robert Kurz, Não há Leviatã que vos salve.

[8] Ernst Lohoff et Norbert Trenkle, Cette société est trop riche pour le capitalisme !

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