Por Christian Ferrer:
Se ele não estivesse vivendo há muitos anos debaixo da terra, eu recomendaria a vocês o Dr. Carlos Caminos, caso necessitem do auxílio de um advogado. Posso garantir, da leitura de seus argumentos, que este homem era pródigo em voos retóricos, em táticas e recursos imaginativos, e desde sempre sabia como se dirigiu a um juiz. Mas, provas de lado, remetemo-nos a um dos casos em que lhe coube intervir, referente a uma suposta intenção de assassinato, e dos grandes.
Eis os fatos: no domingo, 9 de julho de 1916, na ocasião dos festejos do Centenário da Declaração da Independência, o anarquista Juan Mandrini, estado civil solteiro, 24 anos de idade, profissão pedreiro e ali presente na Praça de Maio, sacou um revólver, fez um disparo e a bala acabou incrustada na moldura de uma das janelas do Palácio do Governo, a escassos sessenta centímetros da cabeça de Victorino de la Plaza, na época presidente da nação. Imediatamente Mandrini foi preso — previamente espancado pela multidão — e logo conduzido a julgamento. A causa recaiu no julgado de Sua Senhoria o Juiz Orto, do foro criminal, que de imediato solicitou uma perícia “médico-psiquiátrica” no réu.
O letrado Caminos tomou o caso, nada simples, tratando-se de um suposto delito de lesa-majestade. Na verdade, Mandrini tinha isso como verdadeiramente difícil — muito —, e se diria inclusive que sua cabeça estava por um fio. Além de tudo, ainda existia pena de morte no país, e pouco antes haviam sido justiçados dois pescadores calabreses, os últimos que sofreram a pena máxima aplicada pelo Estado argentino, se forem excluídos massacres posteriores e justiçamentos de presos e sequestrados por motivos políticos.
Antes de tudo, o advogado teria de se ver com o fato indubitável de que seu defendido tinha sim disparado uma arma de fogo. Havia testemunhas. Bem, o que estava fazendo Juan Mandrini na Praça de Maio com um revólver Smith & Wesson nas costas? O advogado explica isso: Mandrini estava na dita praça fazendo o mesmo que todos os demais concorrentes: esperava o momento em que o presidente da nação sairia para fazer sua saudação desde o balcão da Casa Rosada, que é o que fazem todos os presidentes. Isso está indicado no cerimonial e não deixa de ser um entretenimento possível também para um anarquista. Por acaso os anarquistas não teriam direito a participar das algazarras populares como qualquer outro habitante da cidade? Evidentemente que teriam. Logo: ponto para o advogado!
Apesar de certamente Mandrini professar ideias anarquistas, e de que atentar contra altas autoridades costumava ser uma fantasia recorrente entre os membros desta irmandade — uma lasca de seu ”imaginário” —, tampouco era questão de castigar Mandrini simplesmente por compartilhar bravatas de mesa de bar com seus companheiros de ideal. Não pensaria o senhor juiz que Juan Mandrini estivera propenso a confundir imaginação com realidade? Está claro, uma coisa não implica a outra. De modo que: ponto para o advogado! E lá vão dois.
Mas eis aqui que o promotor acusa que o homem tinha em sua casa diversos livros de conteúdo “problemático”, para não dizer explosivo. Este argumento da promotoria não amedronta em absoluto o Dr. Caminos, que retruca o seguinte: “Fácil é compreender que a leitura da Vida de Santo Antônio, Prazeres Cruéis e Os grandes revolucionários, títulos todos sequestrados pela batida policial, puderam produzir em Mandrini o mesmo efeito que Amadis de Gaula ou Os doze pares de França fizeram outrora com os miolos de Don Quixote”. Bem, bem, muito bem, irrefutável verdade, a julgar pela conduta errática seguida prontamente pelo “Cavaleiro da Triste Figura”.
Não se detém aqui o Dr. Caminos, e sem hesitação alguma sobe um degrau a mais na escada da defesa, posto que, diz, estaríamos então enfrentando um tempo de “teoricismos”, no qual muitos acadêmicos e homens de letras, e inclusive vulgares ignorantes, resolvem escrever todo tipo de tratados com a finalidade de explicar a “trama da vida”, fazendo-o com maior ou menor sorte e ambição. Mas também ocorria que outras pessoas não familiarizadas com as letras, Juan Mandrini, por exemplo, “revelam ser meros iludidos que simplesmente disparam um tiro ao ar em dia de alvoroço popular a fim de destruir um preconceito”.
Enquanto os “teoricistas” levam anos de cansaço e de esforços para concluir seus livrecos de 600 páginas, seres como Mandrini resolvem isso em só um segundo. E o que Dr. Caminos trata de nos dizer com esta afirmação? Que Mandrini, antes de se dirigir à Praça de Maio, seguramente estava lendo Miséria da Filosofia, ou melhor, O ocaso do direito penal, “e então o tóxico produz seus efeitos”. A palavra tóxico — me dou conta agora — quer dizer “veneno”. Mas como esses livros tinham sido escritos em um tom puxando para o enfático, então Mandrini seria “uma vítima da doutrinação dos últimos tempos”. A culpa não era dele, então, mas sim dos livros. “Por acaso não se dizia antes que ler muito faz mal?”. Ponto para o advogado.
Não se pode negar, entretanto, que na casa de Mandrini tinha sido encontrado um pequeno folheto que explicava como fazer uma bomba, mas isso não quer dizer que ele o tenha lido. Era o tipo dos livrinhos de rotina nas pranchetas dos anarquistas de todo o mundo e Juan Mandrini não pretendia ser uma exceção à regra. Quanto aos livros subtraídos, já vinham com o folheto, sem contar que uma bomba não é o mesmo que um revólver. O advogado deixava clara a diferença entre uma prova certa e outra meramente “circunstancial”. Bem, mais outro ponto.
E ainda que não deixe de ser verdade que Mandrini vinha escrevendo uma coletânea de poemas intitulada Contra os tiranos, isso resulta ser tema genérico. Tampouco se pode dizer que Victorino de la Plaza fora um deles — um tirano —, senão apenas um representante da classe oligárquica argentina que havia ascendido da vice- presidência até o mais alto em virtude da morte de Roque Sáenz Peña, seu antecessor no cargo. Meio que chegou por causalidade. E, como sabe qualquer estudante da carreira de Letras, um ramalhete de poemas não dá forma a manifesto ou proclamação. São gêneros distintos.
Claro que ninguém esquecia que, em 1886, o espírita e epilético Ignacio Rojas Monjes, também na Praça de Maio, tinha amassado a cabeça do presidente Julio Argentino Roca com uma caliça, e que em 1891, Tomás Sambrice tinha atirado, outra vez em Roca, com um revólver Bull Dog, errando por pouco e ganhando de passagem uma bofetada das mãos de Julio Argentino, um ato que hoje quase seria considerado abuso infantil — o menino tinha catorze anos, ou melhor, doze, dependendo das fontes. Era sabido também que em 1905, o vegetariano e tipógrafo anarcoindividualista Salvador Planas havia atirado no presidente Manuel Quintana com outro Smith & Wesson, se bem que o tiro não chegou a sair do revólver, e que em 1908, o mosaicista e anarcocomunista Francisco Solano tinha jogado uma bomba nos pés do presidente José Figueroa Alcorta, que não explodiu. Mas, mas, mas, o que tinha a ver Juan Mandrini com todos esses sujeitos? Nada. Por acaso Monjes não acabou meio desequilibrado, e Sambrice não caiu morto um tempo depois, e, além disso, não era certo que tanto Solano como Planas tinham fugido juntos da Penitenciária Nacional através de um túnel e ninguém voltou a vê-los nunca mais? Não, não se poderia demonstrar nenhum vínculo entre Juan Mandrini e qualquer um deles.
Bom, tudo bem, mas Juan Mandrini teria feito o disparo ou não o teria feito? Sim, Mandrini tinha disparado, o advogado o admite, mas isso não quer dizer que tenha existido uma tentativa de matar alguém, pois nesses casos “o disparo deve ser feito contra uma pessoa determinada e não para o ar ou contra um muro, como o fez Mandrini”. Bem aqui, isso é fazer de uma verdade indiscutível — a bala na moldura — uma demonstração de absoluta inocência. O fato de que o balaço se tenha detido a um metro de Victorino de la Plaza era justamente a prova de que não estava direcionada contra ele. O advogado ganha outro ponto.
E ainda mais, na verdade Mandrini tinha sim feito pontaria, mas na direção do céu: Deus era seu alvo. Se a bala tinha se desviado “caprichosamente” até a frente da casa de governo, tinha decidido isso sozinha, e, em todo caso, a trajetória de nenhum modo correspondia ao objetivo do anarquista Mandrini. Tal qual. Ah, mas o advogado não solta tão rápido esta linha de defesa do seu cliente. Além do mais, disse-lhe o juiz, as testemunhas do fato deixaram claro que quando Mandrini, que andava diante da fila de escoteiros, fez o disparo, “havia virado o rosto para o lado contrário ao da Casa Rosada”. Ou seja, nem sequer tinha olhado para onde estava apontando. Portanto: “O fato de que o braço de Mandrini se estendera até a perpendicular sobre a qual estava situado o balcão presidencial não significa, naturalmente, que Mandrini dirigira seu tiro para lá e menos ainda ao doutor da Praça”. Um gênio este defensor. E desde já não podemos senão nos encantar com a inserção da palavra “naturalmente” no meio da frase anterior.
Por alto, o Dr. Caminos, que parecia ser filiado ao partido socialista, aproveita para jogar pedra na estadia de Victorino de la Plaza na Casa Rosada: “Opaca presidência”. Mas ao advogado não basta esse gostinho, e bate um pouco mais: “E por acaso também é opaca sua longa e uniforme vida”. Para sermos justos com Don Victorino é preciso dizer que essas palavras eram de algum modo imerecidas, pois em tal opacidade refulge ainda o fato de que o Presidente da Nação tinha se unido, em concubinato, com a governanta e agora Primeira Dama do país, Emily Henry, vinda da Escócia, sem relação familiar nenhuma com Émile Henry, o anarquista francês guilhotinado em 1894.
Mas enfim, estas são coisas — chicanas — da política. Sigamos. O advogado Caminos, já se lançando a especular minuciosamente em favor de seu defendido, sugere o seguinte: dado que ao lado do presidente De la Plaza estava o ministro da Justiça, “por que não imaginar que o tiro fora dirigido ao ministro?”. E um ministro não é o mesmo que um presidente. Ministros são muitos, presidente, um só. A propósito, esse ministro de Justiça, “tão esmerado quanto reacionário”, era Carlos Saavedra Lamas, bisneto de Cornélio Saavedra e futuro Prêmio Nobel da Paz. Bem, não deixa de ser um ponto possível.
É o momento do contra-ataque pelo promotor, que alega que Juan Mandrini tinha “antecedentes”: um ano inteiro na prisão acusado de alteração da ordem — tinha dado socos em um pintor em plena rua —, e também uns dias numa cela por exercer um ato grevista. Ok. De acordo, mas o advogado responde que tais incidências não são nada de outro mundo e para o momento não têm relação com o caso, pois Mandrini não tinha feito esse disparo motivado pela política ou por sectarismo. Não, não, não. Não se poderia comprovar filiação a nenhum partido nem sequer a um sindicato: “Agiu sob o império de seus próprios impulsos”. E com isto o Dr. Caminos refere-se ao parecer psiquiátrico requerido pelo juiz, no qual se estabelecia o seguinte: “Juan Mandrini é um degenerado simples com degeneração psíquica hereditária e carece da capacidade de imputação moral”. Em síntese — segundo o parecer —, Mandrini era um “emotivo”. Isso era a coisa: “emotividade”. De modo que nada de motivos, seu defendido estava além do bem e do mal, era inimputável. Outro ponto para o advogado de defesa.
E consta que o dito parecer tinha sido escrito e assinado pelo médico José Tibúrcio Borda — um especialista em deliriumtremens cujo nome adorna a entrada do manicômio municipal — e pelo neuropsiquiatra Amable Triton Jones, algum dia adscrito ao serviço de Charcot no parisiense Hospital de la Salpêtrière, que seria nomeado interventor da província de San Juan em 1919, e assassinado em 1921, por 18 balaços (e mais uma bomba,para não haver dúvidas), sendo o sexto governador sanjuanense a ir-se desse mundo de forma violenta. E pensar que quando assumiu tinha dito: “Não deve ser muito diferente governar o Hospício que a província de San Juan”. Inclusive dissera mais: “Os governadores de San Juan morrem em seus postos!”. A história lhe daria razão.
A respeito da data do acontecimento que consta em autos, a saber, a festa da Independência enfeitada por escolares e militares, tal dia era apenas um dos 365 com os quais conta o ano. Diz-nos o advogado que se Juan Mandrini tivesse querido realmente matar Victorino de la Plaza, teria feito isso “nas muitas diversas ocasiões em que esteve perto dele”, não no 9 de julho, que é um dia qualquer. E que tampouco Victorino — bastão do casamento Palácio de la Plaza — valesse para tanto. Quase ninguém o conhecia, e pouco era entendido do que ele dizia ao discursar, razão pela qual o humor popular o apelidara de “Doutor Confúcio”. E ademais, segundo Caminos, não há de se magnificar as coisas, “nem cair na debilidade de considerar os homens que ocupam altos cargos como pessoas providenciais”. Notável. Aberta manobra de obscurecimento da autoridade presidencial. Ponto duplo para o advogado.
Mas então, Deus do céu, o que Mandrini quis fazer? Segundo o Dr. Caminos, tão somente “protestar de forma ruidosa”. Algo assim como dar um grito forte ou fazer algum barulho no âmbito público, não muito mais. E desde já não se pode atribuir “intenção criminosa” a um “simples disparo feito no ar”. Que a curvatura feita pela bala culminou na Casa Rosada, isso foi algo não premeditado. Mas justamente por isso Juan Mandrini nem sequer tinha culpa, pois apenas a teria se tivesse causado algum dano, “e todo dano se reduziu a perfurar alguns centímetros de reboque da parede da Casa do Governo”. Outro ponto mais.
Como o advogado qualifica então o ato cometido por Juan Mandrini? Como uma “simples contravenção municipal realizada por um irresponsável a quem os modernos livros de cavalaria transtornaram seus miolos”. E qual é o nome de dita contravenção às ordens policiais? A de desordem na via pública, “cuja pena pode ser paga com uma multa comum e corrente”. E afinal de contas, disse o advogado, trata-se de um fato de “ressonância passageira”. Isso! Quanto pode durar o eco de uma bala perdida? Um par de dias nos jornais, no máximo uma semana. Somam-se mais pontos.
Finalizadas as argumentações da promotoria e da defesa, o juiz Orto determinou o seguinte: que processava Juan Mandrini, não por tentativa de homicídio, mas por disparo de arma de fogo, e o condenava a 1 ano e 4 meses de prisão, que afinal de contas, não é tanto assim.
Uma magnífica defesa do presumido homicida, pontuação próxima ao máximo, triunfo quase total do advogado. Quando Juan Mandrini saiu da prisão, já havia novo presidente, o muito popular Dr. Hipólito Yrigoyen, que também foi baleado por um anarquista, mas isso ocorreria dez anos depois, e o dentista Gualterio Marinetti, que disparou cinco vezes na direção do automóvel presidencial, por sua vez recebeu cinco réplicas fatais em seu corpo. E não ia precisar de um advogado, e sim de um coveiro.
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Fonte da versão em português: verve – Revista do NU-SOL Núcleo de Sociabilidade Libertária – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP – Nº35 – Maio 2019 (Artigo Ponto para o advogado – pp. 47-56).
Tradução do espanhol: Beatriz Carneiro.
Imagem: Victorino de la Plaza e Juan Mandrini (Página 12).
Original em espanhol: Ediciones Urania – Punto para el abogado -3 de junio de 2017
Resumo: O texto narra a defesa do anarquista Juan Mandrini, acusado de atentado, em 1916, contra o presidente da Argentina.
Autor: Christian Ferrer é professor na Universidade de Buenos Aires. Contato: cferrer@fiertel.com.ar.
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