Estado, finança e crise

Estado e finança nas grandes crises da acumulação de capital

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Por Eleutério Prado[1]:

O sonho keynesiano de sempre salvar o sistema de suas contradições pode redundar em pesadelo. [Por exemplo, na crise dos anos 1970 nos Estados Unidos, a política keynesiana de sustentação da demanda efetiva engendrou a estagflação; diante da queda da taxa de lucro, as empresas capitalistas não expandiram o investimento, mas, ao contrário, preferiram elevar os preços das mercadorias.] No caso aqui em discussão, tem-se que o Estado japonês se valeu principalmente do incremento da dívida pública para evitar falências generalizadas no setor privado. Evitou tal colapso, mas ganhou uma dívida astronômica e uma estagnação prolongada…

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Introdução

No capítulo XV do Livro III de O capital, encontra-se uma descrição bem sintética da lógica das crises no modo de produção capitalista. Estas são aí apresentadas como ocorrências intrínsecas ao processo de acumulação de capital, movimentos que advém de suas contradições imanentes e que realizam uma acomodação temporária das forças contrárias que foram tencionadas no próprio processo de acumulação.

A contradição entre o valor de uso e o valor que mora na mercadoria percorre, ainda que sob diferentes formas, o sistema da relação de capital como um todo. A contradição entre a valorização do valor e a produção de bens enquanto tal encontra- se no cerne das crises do modo de produção capitalista.

A meta objetiva do sistema é valorização do valor e não, em primeiro lugar, o atendimento das necessidades humanas com base na produção de valores de uso. Eis que “esse modo de produção” – diz o próprio Marx – “tem como objetivo a conservação do valor do capital existente e sua valorização na máxima medida possível” (Marx, 2017, p. 289). Ademais, como se sabe, essa meta é constantemente perseguida por meio de um processo descentrado e anárquico de concorrência da qual participam muitos capitais particulares. Ora, para se realizarem enquanto tais, esses capitais têm de vender mercadorias, entregando aos interessados não os valores enquanto tais, mas os valores de uso que eles desejam adquirir.

As empresas capitalistas competem entre si para obter lucros e, para que estes sejam os maiores possíveis, buscam sempre reduções dos custos de produção. Tais reduções implicam quase sempre, direta ou indiretamente, na elevação da produtividade do trabalho, ou seja, na redução da quantidade de trabalho necessária para produzir um dado quantum de valores de uso. Marx indica, por isso, que a “produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas” (Marx, 2017, p. 289) e que essa tendência contraria a meta da valorização do valor. É preciso ver o porquê.

O objetivo de cada capital particular consiste em valorizar o valor, em adicionar mais-valor novo ao valor já acumulado no passado. Não só sempre no mesmo nível, mas se possível em nível cada vez mais elevado. Porém, o processo que permite alcançar esse objetivo implica no aumento da produtividade do trabalho, isto é, na redução da quantidade de trabalho necessária para gerar um dado nível de produção. Ora, como é o trabalho que produz o valor e o mais-valor, fica claro que a concorrência intercapitalista atua para reduzir a quantidade de trabalho empregada na produção de mercadorias. O fim e o meio estão, pois, em contradição: ao procurar elevar o mais-valor, as empresas, por efeito do conjunto delas, acabam por reduzir o mais-valor gerado e, assim, talvez, a taxa de lucro.

Ora, essa contradição pode se resolver positiva ou negativamente. A produção capitalista, além de economizar trabalho, implica também numa tendência de aumentar a produção e o escopo da produção. O primeiro caso ocorre quando a produção pode se expandir por meio de um aumento das quantidades das mercadorias produzidas. Eis que este aumento pode mais do que compensar a perda de um certo quantum de trabalho devido ao aumento da produtividade do trabalho. O segundo caso ocorre quando essa expansão se torna temporariamente inconveniente ou mesmo uma impossibilidade prática para os capitalistas. Com a contração do investimento, a contradição acima apontada se resolve negativamente por meio de uma crise.

De qualquer modo essa última eventualidade está sempre ligada à queda da taxa de lucro e, assim, à moderação ou mesmo à interrupção do investimento. Há várias configurações a considerar começando por aquelas que se delineiam como mudanças conjunturais. A expansão da produção implica na expansão da população trabalhadora, mas ela encontra limites já que o exército industrial de reserva é sempre limitado em cada momento do tempo. Se a expansão se prolonga por um tempo suficientemente longo, ela pode levar a um crescimento substantivo dos salários reais acima do aumento da produtividade do trabalho, o que ocasiona uma redução da taxa de lucro. Se a taxa de juros no momento de auge sobe muito para responder ao aumento da inflação dos preços, o excesso da taxa de lucro em relação à taxa de juros pode se tornar insuficiente para manter o ímpeto de acumulação dos capitalistas. O auge interverte-se, então, em recessão. Se no movimento de acumulação, os setores – em particular o setor produtor de meios de produção vis-à-vis do setor produtor de meios de consumo – expandirem- se em desequilíbrio, as taxas de lucros setoriais podem se desalinhar fortemente. Isto pode frear o investimento, elevando, assim, a capacidade ociosa, o que reduz a lucratividade.

A configuração central da teoria das crises de Marx delineia-se, entretanto, como uma mudança estrutural de longo prazo. O desenvolvimento das forças produtivas engendra uma tendência para a elevação da composição do capital, isto é, para uma diminuição da parte variável em relação à parte constante, o que tende, por sua vez, a produzir uma queda da taxa de lucro. Como se sabe, Marx apresentou essa implicação sob o nome de lei tendencial da taxa de lucro, indicando que ela marcava de modo crucial a história do capitalismo. Para apresentar essa configuração, expos, primeiro, a lei enquanto tal e, em sequência, as causas que eventualmente podem contraria-la. A mais importante delas consiste na elevação da taxa de exploração. Só depois, ele tentou fazer a síntese ampla que se encontra no capítulo 15 do Livro III e que alimenta este artigo. Sem pretender ter mencionado todas as configurações possíveis, vale sempre de qualquer modo a seguinte observação do próprio Marx:

Essas diversas influências se fazem sentir, ora de maneira mais justaposta no espaço, ora de maneira mais sucessiva no tempo; o conflito entre as forças antagônicas desemboca periodicamente em crises. Estas são sempre apenas violentas   soluções   momentâneas   das   contradições   existentes,   erupções violentas que restabelecem por um momento o equilíbrio perturbado (Marx, 2017, p. 289).

Quando a contradição se resolve positivamente, há sempre incremento do capital acumulado. Porém, quando ela se resolve negativamente, tem de ocorrer uma redução, seja por meio de uma mera desvalorização ou mesmo uma destruição do capital acumulado. É preciso notar já aqui que essa ruína pode atingir todas as formas que o capital assume no processo de acumulação, sejam elas reais ou fictícias. Como no andamento temporal do sistema complexo do capital as resoluções positivas e negativas das contradições costumam se alternar no tempo, vale também esta outra observação de Marx:

A desvalorização periódica do capital existente, que é um meio imanente ao modo de produção capitalista para conter a queda da taxa de lucro e acelerar a acumulação de valor de capital mediante a formação de capital novo, perturba as condições dadas nas quais se consuma o processo de circulação e reprodução do capital e é, por isso, acompanhada de paralisações súbitas e crises do processo de produção (Marx, 2017, p. 289).

Como a produção capitalista é um processo de expansão avassalador que tende, ainda que por meio de constantes flutuações e turbulências, ao crescimento exponencial, espraiando também pelo mundo como um todo, ela própria põe os seus próprios problemas. Marx registrou essa característica do capitalismo dizendo que “o verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital”. Eis que ele põe constantemente limites para si mesmo, os quais transforma em barreiras:

A produção capitalista tende constantemente a superar esses limites que lhes são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável (Marx, 2017, p. 289).

Eis aí, pois, o núcleo da teoria da crise de Marx tal como ela aparece no capítulo XV do Livro III de O capital. Segundo ele, as crises ocorrem em última análise porque a produção capitalista é produção para o capital e não produção para atender as necessidades dos produtores de mercadorias. Enquanto processo de valorização, ela é insaciável, mas enquanto produção de valores de uso, ela não é capaz de saciar a grande massa dos trabalhadores que labutam na produção de mercadorias; ao contrário, ela os expropria e, ao fazê-lo, manifesta a sua tendência intrínseca para gerar superacumulação. Essa apresentação da crise, no entanto, mesmo sendo central, está ainda limitada metodologicamente. A exposição dialética do sistema do capital em O capital, tendo chegado a esse momento, ainda não abarcou o capital portador de juros, o capital fictício que dele se deriva, assim como o Estado como agente econômico. É preciso ir além…

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Um passo atrás

Aqui se faz um esforço para incorporar na teoria de Marx o modo como o capital de finança interage com o capital funcionante (industrial e comercial), seja no boom e seja recessão do processo de acumulação, observando especificamente a expansão e a contração do endividamento privado. Para isso, de início, faz-se uso criticamente da descrição desse processo que se encontra nos textos do economista neokeynesiano Richard C. Koo, os quais focam especialmente a experiência japonesa nas últimas duas décadas do século XX e primeira década do século XXI. Eis que as grandes crises da economia capitalista, tais como as que eclodiram em 29 nos Estados Unidos, em 90 no Japão e 2008 nos Estados Unidos, são sempre precedidas pela formação de bolhas de crédito, isto é, por fortes crescimentos do endividamento das empresas, os quais passam a ser revertidos depois que a bolha estoura.

Antes de apresentar essa descrição, é preciso notar que o capitalismo contemporâneo difere num ponto essencial do capitalismo observado por Marx. O sistema do capital nos primeiros três quartos do século XIX era formado por empresas dirigidas pelos próprios donos que, em geral, financiavam o investimento a partir dos próprios lucros. Quando elas usavam capitais externos, estes provinham grosso modo dos bancos comerciais e eram constituídos por empréstimos de curto prazo. Já no último quarto do século XIX essa situação passou a mudar radicalmente. Por um lado, difundiram-se mais e mais as corporações, isto é, as empresas abertas ou fechadas de capital socializado e, por outro, desenvolveram-se concomitantemente os mercados de valores mobiliários capazes de fornecerem financiamento de longo prazo. Os proprietários dessas empresas não são mais donos individuais, mas fundos constituídos por detentores de participações, ações e títulos. O financiamento do investimento não deixa de se fundar em lucros retidos, mas passa a depender crucialmente do financiamento de longo prazo proporcionado por tais mercados de capitais. Entretanto, ao lado das corporações, continuou existindo uma enorme população de pequenas e médias empresas que, grosso modo, não tem acesso a esses mercados (Toporowski, 2017).

O desenvolvimento secular desse “novo” capitalismo deu origem ao fenômeno que é usualmente referido como financeirização. Este se revela por meio da expansão do endividamento das empresas de modo descolado da acumulação real de capital. Expansão essa que está registrada nos balanços, mas implica também em mudanças no modo de administração das próprias empresas enquanto tais. A partir do livro clássico de Hilferding, o entrelaçamento das grandes empresas capitalistas, industriais e comerciais, com o sistema formado pelos bancos e empresas financeiras em geral passou a ser chamado de capital financeiro (Chesnais, 2017, p. 1). O capital financeiro e a expansão da finança – que decorre do desenvolvimento histórico do sistema de crédito – são características, portanto, do capitalismo contemporâneo.

Essa consideração de ordem histórica sobre o desenvolvimento do modo de produção capitalista permite retomar com mais clarividência a descrição de Koo da crise que eclodiu no Japão, em 1990. As duas figuras que se seguem ilustram essa exposição.

Entre 1986 e 1990, a economia capitalista no Japão experimentou um crescimento espetacular do endividamento corporativo o qual esteve associado a uma bolha no crédito imobiliário. Em 1990, essa bolha estourou; em sequência, o preço dos imóveis despencou gradativamente chegando a ficar, 15 anos depois, 87% menor do valor que alcançara no pico. O endividamento crescente das corporações reverteu-se. A dívida corporativa, medida em relação ao PIB, em consequência, atingiu um máximo em 1997 para passar a cair daí em diante. O gráfico da Figura I que aparece em sequência mostra esse andamento de forma esclarecedora.

 

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O processo de redução do volume das dívidas durou 16 anos. Se crescera 10% ao ano em 1986, quatro anos depois chegou a aumentar 20% ao ano; ora, esse crescimento ficou gradativamente menor entre 1990 e 1996, tornando-se negativo a partir dessa última data, num processo de desalavancagem que durou até 2006, quando então terminou o que Koo costuma denominar de “recessão de balanço”.[2] Esse autor sustenta que o processo que resolve esse tipo de dificuldade é lento e demorado e que ele costuma deixar um trauma: “aqueles que tiveram de pagar dívidas durante a grande depressão (…) nunca mais tomaram emprestado até a própria morte” (Koo, 2014, p. 137).

Deve-se notar que o processo da redução do endividamento ocorreu simultaneamente com uma forte queda da taxa de juros. Entre 1995 e 2006, a taxa de juros, que atingira 8% em 1991 e passara a cair deste então, chegou a ficar muito próxima de zero por dez anos seguidos. Porém, apesar do custo de carregamento das dívidas ter se tornado muito baixo, o investimento não se recuperou de um modo significativo. É claro que a contração do endividamento reduziu a demanda efetiva e, assim, introduziu um viés recessivo na economia capitalista. Porém, se Koo nota e enfatiza esse problema, não explica porque o investimento deixou de ocorrer mesmo quando as empresas dispunham de lucros retidos e a taxa de juros se tornou praticamente nula. Como economista neokeynesiano, ele julga simplesmente que os capitalistas se transformaram na mudança da conjuntura: se antes maximizavam lucro, após a crise, eles passaram a minimizar o endividamento! Por agora, veja-se somente a sua explicação para essa mudança de comportamento: “quando a bolha financiada por dívidas estoura, um grande contingente de empresas e famílias descobrem que as obrigações incorridas no passado continuam existindo, mas os ativos adquiridos com esses fundos colapsaram em valor, deixando os seus balanços no vermelho” (Koo, 2014, p. 131).

O governo japonês, segundo a descrição de Koo, procurou evitar a depressão elevando fortemente o gasto público. E essa ação manteve, ainda que em nível bem mais baixo, o crescimento do PIB. Note-se: o PIB do Japão se elevara 8% ao ano em média, durante o “milagre japonês” ocorrido entre 1955 e 1973, crescera 2,5% ao ano entre 1974 e 1985, subira para 4% ano durante o período de expansão da bolha, mas, após o estouro da bolha de credito, passara a aumentar numa média abaixo de 2% ao ano. O gráfico da Figura II, em sequência, mostra o crescimento do PIB em trilhões de ienes entre 1980 e 2011; nele é bem notória a inversão de tendência antes e depois de 1990. De qualquer modo, segundo Koo, a ação salvadora do governo fez com que a taxa de desemprego se mantivesse abaixo 5,5% da força de trabalho mesmo durante todo o período recessivo.

 

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Entre 1990 e 2005, a dívida pública do governo japonês cresceu fortemente para compensar o recuo do setor privado; o déficit público que era 77% do PIB em 1990 chegou a 186% do PIB em 2005 (e a 250% em 2015). Koo estima que, sem esse enorme estímulo do governo, um cenário de depressão teria se instalado na economia capitalista no Japão devido ao processo contínuo de redução do endividamento, após 1990. Como “o setor privado estava reduzindo a sua alavancagem, a ação fiscal do governo não reduziu o seu espaço no sistema econômico, não gerou mais inflação ou um forte crescimento da taxa de juros”. Ao contrário, ela evitou uma perda irreparável: “ao se assumir de modo otimista” – diz ele – “que, sem a ação do governo japonês, o PIB hipotético retornaria ao nível de 1985, a diferença entre esse PIB hipotético e o PIB real teria alcançado 2.000 trilhões de ienes, num período de 15 anos” (Koo, 1911, p. 23).

Para Koo, o Estado capitalista figura como um deus ex machina que é capaz de atuar autonomamente nos engasgos menores e maiores da acumulação de capital, impedindo as suas consequências mais desastrosas. Basta, segundo ele, que o Estado passe a fazer déficits que sejam capazes de compensar o recuo de setor privado para que o sistema econômico pouco a pouco se recupere, sem que o crescimento se interrompa mesmo se se torna mais lento, sem que a riqueza capitalista seja destruída mesmo se deixa de crescer fortemente. Porém, parece justo questionar, se o Estado japonês impediu uma queda abrupta o PIB após 1990, qual teria sido o custo de tal benefício? Como a sua capacidade de atuação está condicionada – e mesmo encontra- se limitada – pelos próprios movimentos da acumulação de capital?

Para responder a essas perguntas, é preciso investigar melhor o que ocasionou o crescimento da bolha antes dessa data e o que não permitiu uma recuperação espontânea do investimento privado após o seu estouro. Afirmar simplesmente que as empresas optaram por reparar os seus balanços mesmo quando a taxa de juros ficou próxima de zero parece um argumento bem insuficiente. Eis que uma nova onda de investimento poderia ter produzido esse resultado sem o ônus de uma quase estagnação muito prolongada. Por que ela não ocorreu?

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Um passo à frente

Como o enorme desenvolvimento do mercado de capitais – e das corporações que interagem e se entrelaçam com ele – afeta a teoria da crise exposta em grandes traços na primeira seção deste artigo? Ora, esse desenvolvimento, mesmo se dava os seus primeiros passos na segunda metade do século XIX, não passou desapercebido para o próprio Marx. Ademais, o seu futuro podia ser prefigurado. Eis que não se configura como um trajeto arbitrário na história moderna, mas, ao contrário, advém por necessidade interna da evolução do próprio modo de produção capitalista. À medida que este se expande, requer a centralização e a concentração do capital, processos estes que fundam e constituem um sistema de crédito cada vez mais sofisticado, isto é, um mercado de capitais. Note-se, de acordo com o próprio Marx, que o desenvolvimento do sistema de crédito, em sua relação com o capital industrial, leva à “suprassunção latente” da propriedade individual do capital (Marx, 2017, p. 499). Pois, como tal, ele é já o desenvolvimento das formas coletivas e centralizadas de propriedade capitalista, em particular, da sociedade por ações, mas também dos fundos em geral que hoje dominam na acumulação capitalista.

O desenvolvimento do sistema de crédito não muda a natureza última da acumulação de capital, mas potencializa os seus desequilíbrios: “o processo de reprodução, que por sua própria natureza é um processo elástico, vê-se forçado aqui até o máximo” – anota Marx em um de seus rascunhos que figura agora como material do capítulo 27 do Livro III de O capital. Eis que “o sistema de crédito se apresenta como a alavanca principal da superprodução e do excesso de especulação”, pois “uma grande parte do capital social é investida por aqueles que não são os seus proprietários” (Marx, 2017, p. 499). O sistema de crédito permite que o sistema da relação de capital supere as limitações do capitalismo de empresas conduzidas por seus donos, sem, no entanto, superar a sua lógica interna de criação e de superação de barreiras cada vez portentosas.

“Por conseguinte, o crédito acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a instauração do mercado mundial, que, por constituírem as bases da nova forma de produção, têm de ser desenvolvidos até um certo nível como tarefa histórica do modo de produção capitalista. O crédito acelera ao mesmo tempo as erupções violentas dessa contradição, as crises e, com elas, os elementos da dissolução do antigo modo de produção.” (Marx, 2017, p. 499).

O advento do capitalismo financeiro vem a ser “a suprassunção do modo capitalista no interior do próprio modo de produção capitalista e, portanto, uma contradição que anula a si mesma (…). Em certas esferas, ele estabelece o monopólio e, com isso, provoca a ingerência estatal. Produz uma nova aristocracia financeira (…) todo um sistema de especulação e de fraude (…). É produção privada, sem o controle da propriedade privada” (Marx, 2017, p. 496).

Marx sabia, ademais, que o crédito antecipa a realização das mercadorias e, assim, é capaz de levar a acumulação a um nível que não ocorreria sem ele: produz – diz – uma “aceleração (…) das diferentes fases da circulação ou da metamorfose das mercadorias e também da metamorfose do capital; portanto, aceleração do processo de reprodução em geral” (Marx, 2017, p. 494).

Feito esse complemento à exposição da primeira seção deste artigo, torna-se possível agora reinterpretar a grande crise da economia capitalista no Japão, indo além da descrição superficial de Richard C. Koo. Para alcançar esse objetivo faz-se uso de um artigo de Estaban E. Maito, Auge e estancamento do Japão (1955-2008), o qual estuda o mesmo fenômeno histórico, fazendo isso, entretanto, na perspectiva da teoria das crises de Marx. Indo além das manifestações aparentes, o seu escrito pretende mostrar que “a real razão do boom e da crise do capitalismo japonês está fundada estruturalmente nas leis da acumulação de capital e na tendência declinante da taxa de lucro” (Maito, 2014, p.3).

A figura III que se segue resume graficamente os resultados de seu estudo. Ela mostra, em primeiro lugar, que a taxa de lucro caiu expressivamente entre 1955 e 2008. De um patamar em torno de 25% no começo do período passou para um patamar abaixo de 10% ao ano no seu fim. Se no pós-guerra e até 1973 esteve entre as mais altas do mundo, declinou quase de modo constante a partir de 1969, tornando-se, ao final da quadra como um todo, uma das mais baixas. Note-se que a economia capitalista no Japão, como indica Maito, não foi capaz de aproveitar a recuperação parcial dos anos 1980, tal como ocorreu em geral nos outros países desenvolvidos.

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Note-se, também, que a linha de tendência da taxa de exploração[3] permaneceu constante no período como um todo, mesmo que essa própria taxa tenha flutuado significativamente. Apesar de ter caído fortemente entre 1969 e 1975, recuperou-se daí então até 1988. Em consequência, o que explica ao fim e ao cabo a queda tendencial da taxa de lucro é justamente a elevação da composição em valor do capital, o que está de acordo com a teoria da crise de Marx. Segundo Maito, “foi precisamente a vitalidade do Japão no interior da economia mundial que propiciou a grandeza da crise, pois as altas taxas de lucro promoveram uma acumulação de capital fixo em tal montante que acabou, finalmente, por minar dramaticamente a lucratividade do capital” (Maito, 2014, p. 4).

Em particular, deve-se notar que a bolha entre 1986 e 1990 não se associou a um aumento da taxa de lucro e, assim, à expansão da acumulação e ao crescimento econômico, mas, ao contrário, deveu-se a um movimento especulativo que respondeu a uma tendência de queda da taxa de lucro observada no período. Ela foi inflada pela fuga para frente do capital superacumulado na forma de capital dinheiro em busca desabalada de uma remuneração que não encontrava mais na esfera da produção de mercadorias. Ora, buscas como essa não podem terminar senão numa enorme frustração.

Se o estouro da bolha, como anotou Koo, destruiu riqueza, aniquilou apenas, em parte, valores desmedidos (preços dos imóveis) e capital fictício (títulos e ações) principalmente, já que a composição em valor do capital continuou crescendo no período subsequente. Se a ação do Estado impediu uma queda do PIB e, assim, a derrocada das corporações industriais e financeiras, tal como observou também Koo, anulou também a função recuperadora da crise inerente à acumulação desmedida de capital. Impediu a destruição do capital industrial e, assim, a restauração da taxa de lucro em patamares mais elevados, o que propiciaria o retorno eventual do investimento. Nessa circunstância, não sobrou para as corporações sobreviventes, núcleo dinâmico do capital industrial, outra alternativa do que reduzir a alavancagem, isto é, abater o nível de seu endividamento.

Na verdade, o Estado buscou preservar ao máximo o sistema do capital financeiro que caracteriza o capitalismo contemporâneo. Em outras palavras, preservou, assim, o sistema de crédito, a finança magnificada, em seu entrelaçamento com o sistema corporativo das grandes empresas monopolistas.

Koo julga que o investimento não se recuperou porque os capitalistas se tornaram poupadores líquidos, ou seja, passaram a gastar menos do que ganhavam para poder restaurar os seus balanços desequilibrados. Ora, ele apenas viu e registrou como as coisas apareceram. Como a lucratividade efetiva e esperada se afigurava muito baixa, os capitalistas perderam o incentivo para investir, para elevar a capacidade de produção do sistema, e, por isso, passaram a empregar o lucro realizado para reduzir o endividamento interno e para investir mais e mais no exterior. É bem sabido que os capitais japoneses, depois da crise de 1990, passaram migrar maciçamente para o resto do mundo, para a China, por exemplo, em busca de maior lucratividade.

Koo não percebe também que atuação do Estado está condicionada pelas leis de desenvolvimento da acumulação de capital, em particular, pela evolução da taxa de lucro. Ela pode, sim, modificar reativamente o que ocorre na expansão, na crise e na contração do sistema, mas não pode anular as contradições, as tendências e as contratendências que movem o processo sempre turbulento da acumulação de capital. Na verdade, o Estado não atua como sujeito independente, mas como suporte da relação de capital – não obviamente dos capitais particulares, mas como suporte do capital social e, principalmente, do capital monopolista em associação com o capital de finanças que domina na contemporaneidade.

O Estado é um ator no sistema econômico que parece – apenas parece – estar fora dele. Pinta como reformador independente, mas trabalha no interior dos limites e das determinações da acumulação de capital (Trindade, 2017). Pois, faz parte e forma a totalidade social estruturada com base na centralidade da relação de capital. Atua sobre o sistema econômico por meio de várias políticas tais como a monetária, fiscal, cambial, tecnológica, educacional, etc. Porém, não é capaz de conduzi-lo ao seu talante rumo a um estado de prosperidade sempre maior. O sonho keynesiano de sempre salvar o sistema de suas contradições pode redundar em pesadelo.[4] No caso aqui em discussão, tem-se que o Estado japonês se valeu principalmente do incremento da dívida pública para evitar falências generalizadas no setor privado. Evitou tal colapso, mas ganhou uma dívida astronômica e uma estagnação prolongada…

Na verdade, a financeirização intensificadora e a intervenção estatal salvadora são fenômenos que se solicitam e que se complementam na economia capitalista contemporânea. Em conjunto, elas tendem a transformar a crise episódica de expansão da acumulação em crise estrutural que se manifesta como travamento e estagnação.

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FONTE: Blog Economia e Complexidade (Eleutério Prado) – 23/11/2017

Vide também de Eleutério Prado: O “rentismo” e a léxis de O capital (Uma crítica ao conceito de “capital rentista” em François Chesnais).

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NOTAS:

[1] Professor titular e sênior do Departamento de Economia da FEA/USP.
Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blog na internet: http://eleuterioprado.wordpress.com

[2] Tradução tentativa do termo “balance sheet recession” empregado por Koo para designar as recessões nas quais as empresas capitalistas procuram sistematicamente reduzir o seu nível de endividamento. Ver, por exemplo, Koo (2011).

[3] Note-se que a linha da taxa de exploração foi plotada após uma divisão dos valores reais por 10. O recurso visou colocá-la na mesma figura junto com a taxa de lucro e a composição em valor do capital. Lembre-se, também, que a taxa de lucro é igual a taxa de exploração dividida pela composição em valor do capital somada de 1.

[4] Por exemplo, na crise dos anos 1970 nos Estados Unidos, a política keynesiana de sustentação da demanda efetiva engendrou a estagflação; diante da queda da taxa de lucro, as empresas capitalistas não expandiram o investimento, mas, ao contrário, preferiram elevar os preços das mercadorias.

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REFERENCIAS:

Chesnais, François – Finance capital today – Corporations and banks in the last global slump. Leiden/Boston: Brill, 2016.

Koo, Richard C. – The word in balance sheet recession: causes, cure, and politics. In: Real-world economics review, nº 58, 2011.

____________ – Balance sheet recession is the reason for secular stagnation. In: Secular stagnation: facts, causes, and cures. Ed. Teulings, Coen; Baldwin, Richard. Londres: CEPR Press, 2014.

Maito, Esteban E. – Auge y estancamiento de Japón (1955-2008). Una explicación marxista. MPRA paper 53102, 2014.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro III: O processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.

Toporowski, Jan – From Marx to the Keynesian resolution: the key role of finance. In: Review of Keynesian Economics, vol. 5 (4), 2017, p. 576-585.

Trindade, José R. – Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista – uma abordagem marxista. Curitiba: Editora CRV, 2017.

 

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