Sair do trabalho?

Entrevista com Anselm Jappe [1] (Revue Réfractions – Recherches et expressions anarchistes n°38 – Versão em português por Pedro Henrique de Mendonça Resende – https://ocasocial.wordpress.com):

“A esquerda sempre afirmou que está ‘no interesse’ dos operários fazer greve, demandar melhores condições de trabalho, etc., e surpreende-se com o pouco zelo deles para defender tais interesses. Ela rebateu, então, com uma crítica da manipulação através da publicidade, por exemplo. Mas, uma vez que a população, na sua grande maioria, aceitou a ideia de que a vida se desenrola através das categorias dinheiro, trabalho e mercadoria, torna-se  lógico que os operários possam preferir uma redução de seu trabalho ao invés de perder completamente seu emprego”

.

Entrevistador: Anselm Jappe é um teórico crítico de envergadura. Ele publicou em 1992,  em italiano, uma destacada monografia sobre Guy Debord, rapidamente traduzida e depois reeditada. Com As aventuras da mercadoria, publicado em 2003, ele contribuiu  em seguida para difundir no mundo francófono as ideias da corrente alemã “crítica do valor” (Wertkritik), representada por autores como Robert Kurz, Roswitha Scholz,  Norbert  Trenkle e Ernst Lohoff, e organizada em torno das revistas alemãs e austríacas Krisis, Exit! e Streifzüge. Conhecida na França graças à publicação, pelo grupo Krisis, do Manifesto contra o trabalho, essa correte propõe pensar “com Marx, além de Marx”. Trata-se de se apoiar na leitura  marxiana das categorias  fundamentais do capitalismo (mercadoria, dinheiro, trabalho abstrato e valor) tal como ela se manifesta em O capital, a fim de  rejeitar as pretensões do marxismo tradicional relativas à realização do proletariado na história, à liberação da produção dos entraves da propriedade privada ou à apropriação coletiva das ferramentas tecnológicas.

A oposição assim estabelecida entre um Marx “esotérico” e um Marx “exotérico” abre três grandes brechas em relação à leitura marxista tradicional. No lugar de uma luta pela distribuição do trabalho, da mercadoria e do dinheiro, coloca-se doravante no centro da crítica o fetichismo da mercadoria ou, dito de outro modo, o fato de que os homens continuam a fazer a história, mas acreditando depender realmente das categorias abstratas. Uma vez que estas categorias formam a própria essência do modo de  produção capitalista, elas se tornam nossa realidade, e não se conseguiria sair do capitalismo sem submetê-las a uma crítica radical. Em seguida, ao invés de considerar a economia como um elemento que existe desde sempre, a critica do valor expõe sua emergência histórica, e se esforça, consequentemente, para pensar a crise em função de um limite ao mesmo tempo interno e externo (criação de bolhas especulativas, compensando a crise da economia real, e desastres ecológicos). Enfim, a “nova crítica do valor” não se limita a pensar o mundo contemporâneo em função apenas do saber da crítica da economia. Com os trabalhos de Roswitha Scholz ela adota o feminismo para descrever o capitalismo como uma forma social que repousa em uma dissociação sexual historicamente constituída entre masculino e feminino.

Para nós, o anarquismo tem muito a ganhar ao estudar, compreender e debater com os pensadores da “nova crítica do valor”, sem fascinação indevida, mas não simplesmente desqualificando a forte tendência teoricista dessa corrente. Com um autor como Anselm Jappe nós temos, sem dúvida, bastante coisa para aprender a respeito da questão das transformações do trabalho sob o capitalismo, sobre sua pregnância contemporânea, mais e mais difundida, e sobre a possibilidade de encontrar um apoio para criticar o capitalismo na sua fase atual.

Levantamos, de início, uma ambiguidade: os pensadores ligados à critica do valor atraem às vezes uma reputação de serem teoricistas, talvez em razão do texto seminal Manifesto contra o trabalho, do grupo Krisis (2002). Uma objeção fácil consiste em dizer que se  pode muito bem rejeitar o trabalho na teoria, mas a realidade social logo nos traz de volta à labuta. O que você responde a este gênero de crítica?

Anselm Jappe: Não se pode dizer que o Manifesto contra o trabalho tenha sido “seminal”. Na Alemanha, ele apareceu em 1999, ou seja, uma dúzia de anos depois do primeiro número da revista Krisis. Ele foi, em contrapartida, o primeiro texto do grupo que alcançou um grande público – o primeiro também a circular na França. Na minha opinião ele apresenta, entretanto, alguns defeitos que  refletem certas indecisões daquele momento, notadamente a propensão de uma parte do grupo de considerar a substituição do trabalho humano pelas tecnologias como a base possível para uma emancipação social.

Desde o início, o que me interessou na crítica do valor é a vontade de assumir uma posição teórica que busca recomeçar a crítica social desde as próprias bases, enquanto a tendência majoritária era de considerar que a teoria deveria se manter em uma posição ancilar em relação aos movimentos sociais (quer se tratasse do movimento antinuclear, do feminismo, do terceiro-mundismo, etc.). Teóricos como Kurz apostavam na  retomada de uma teoria fundamental. Com certeza, eles não partiam do nada: eles se  apoiavam no Marx “esotérico”, em oposição ao Marx “exotérico” do marxismo  ortodoxo.  A crítica  do valor não se definia, a priori, através da inscrição em um movimento teórico já existente:  ela não era nem “althusseriana”, nem “gramsciana”, nem “pró-situ”, nem mesmo “frankfurtiana”. Além disso, partia-se do parti pris  de se libertar de certa  cegueira pragmática. Ao seguir demasiadamente o movimento real, a “práxis” limita-se a um ponto de vista parcial. Se se pretende pensar a totalidade, certa distância é necessária.

Não se trata, entretanto, de se retirar em uma “torre de marfim”. A teoria deve estar em contato direto com o drama do nosso mundo contemporâneo: o tornar-se supérfluo da humanidade. Isto significa que, além da exploração clássica, existe um problema mais grave  ainda:  enquanto  os homens não  são  mais  necessários  para  valorizar  o capital  através do seu trabalho, eles se tornam supérfluos aos olhos do capital. Kurz mostrou isso muito bem em O livro negro do capitalismo. Ele evoca os sofrimentos vividos pela humanidade sob o capitalismo, sem cair nos discursos da necessidade histórica desses sofrimentos para alcançar um estágio superior do desenvolvimento das forças produtivas, prelúdio para a construção do socialismo. Todavia, não se deve confundir esta abordagem com aquela do Manifesto dos desempregados felizes (publicado em 1996 por um trio de desempregados berlinenses) ou com um documentário como  Atenção, perigo, trabalho!,  de Pierre Carles. Estes são exemplos do que eu chamaria de uma crítica superficial do trabalho. Eles pressupõem a continuação indefinida do capitalismo e podem apenas vislumbrar a distribuição de algumas migalhas às pessoas que não teriam “desejo” de trabalhar (os partidários da renda universal engajam-se às vezes nesta direção). Quanto à crítica “categorial” do trabalho, ela leva em consideração o fato de que o trabalho está realmente em vias de ter fim: o capital tem cada vez menos necessidade de trabalho vivo! Ela é, então, muito realista, em oposição às proposições utópicas que visam “dar trabalho para todo mundo”. Esta situação não chegará jamais no capitalismo. Os políticos de direita e de esquerda, que pressupõem que se poderia ainda salvar a reprodução capitalista através do ciclo trabalho-dinheiro-capital acumulado, são irrealistas, apesar do que eles pretendem.

.

.

Entrevistador: As teses que você defende repousam em uma leitura da obra de Marx – em particular do Capital e dos Grundrisse –, que herda os trabalhos de Moishe Postone e de Robert Kurz. De maneira geral, e para ficar nos pontos comuns entre as posições deles, trata-se de propor uma crítica do capitalismo a partir de suas categorias fundamentais (trabalho abstrato, dinheiro, mercadoria, capital). Esta crítica “categorial” se separa, segundo você, de uma crítica centrada na luta de classes. Você pode explicar o que quer dizer quando opõe uma crítica do trabalho sob o capitalismo a uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho? Se os proletários e os capitalistas, entre outras coisas, participam todos de um processo fetichista que ao mesmo tempo os ultrapassa e não deixa de ser constituído por eles, o que ocorre com a categoria exploração?

Anselm Jappe: A exploração permanece um fato evidente, mesmo se ela tem sido em boa medida deslocada em direção às regiões “periféricas”. Mas o que se entende, justamente, por exploração? Em termos marxistas, significa que existe um mais-valor que resulta da diferença entre o capital investido e o valor obtido (o lucro) e que é o fruto de um mais-trabalho não pago. A exploração é, então, indispensável ao capitalismo. Mas esta extração de mais-valor não assume necessariamente o rosto clássico do operário de mãos calejadas ou dos operários de Bangladesh (cujo mais-valor produzido é, afinal, muito tímido na escala da concorrência mundial em razão da unificação das taxas de lucro). Os operários nos setores high-tech, mais bem pagos, também produzem mais- valor para seus empregadores, ainda que sejam muito bem pagos.

Permanecendo atento à exploração, é necessário também levar em conta a questão do limite interno do capitalismo, segundo a qual a produção de mais-valor fica demasiadamente reduzida. Não se deve confundir o lucro individual de algumas  empresas com a taxa média de lucro do sistema no seu conjunto. Devido à exploração, algumas indústrias engendram enormes lucros, notadamente nas regiões do [hemisfério] Sul, mas isso não basta para dar nova jovialidade ao capitalismo. É necessário opor-se às leituras que consideram que o capitalismo estaria com saúde plena porque ele deslocou suas fontes de mais-valor. Ainda que isto seja difícil de mensurar, as indústrias europeias, nas quais os operários são relativamente bem pagos, contribuem mais para a acumulação global de capital do que os operários têxteis das Filipinas.

Daí por que afirmo que a luta de classes existe efetivamente, mas sob a forma de uma luta entre os interesses divergentes no interior do quadro capitalista. Ela não é, aliás, especifica da sociedade capitalista, encontrando-se exemplos em todas as sociedades ditas “desenvolvidas”. Mas em uma sociedade capitalista plenamente desenvolvida, a luta de classes não se desenrola entre uma categoria de indivíduos proprietários do capital e outra situada fora do capital. Isto não poderia ser válido senão por um período reduzido, em uma fase de transição. Em uma sociedade capitalista realmente implantada, o capital torna-se uma relação  social  na qual todo mundo ou quase todo  mundo participa da transformação global de trabalho em dinheiro,   depois em capital acumulado. Evidentemente que esta participação efetua-se segundo redistribuições e papéis muito diferentes. Mas não existe diferença “ontológica” entre, por exemplo, os capitalistas que Marx chama de “suboficiais” do capital e os operários que encontram igualmente seu interesse na reprodução desse sistema.

A esquerda sempre afirmou que está “no interesse” dos operários fazer greve, demandar melhores condições de trabalho, etc., e surpreende-se com o pouco zelo deles para defender tais interesses. Ela rebateu, então, com uma crítica da manipulação através da publicidade, por exemplo. Mas, uma vez que a população, na sua grande maioria, aceitou a ideia de que a vida se desenrola através das categorias dinheiro, trabalho e mercadoria, torna-se  lógico que os operários possam preferir uma redução de seu trabalho ao invés de perder completamente seu emprego.

.

.

Entrevistador: Se o trabalho é a própria substância das relações sociais no capitalismo, e se ele engloba o trabalho concreto, heterogêneo, em uma abstração puramente quantitativa (cada trabalhador é produtor de valor e está medido por um tempo objetivamente determinado), será que serve ainda para alguma coisa evocar, à maneira de certos sindicalistas revolucionários, a dignidade do “trabalho bem feito”, a defesa da “bela obra”, como fundamento de uma crítica anticapitalista? Isto não é um encantamento mistificador? É por causa deste gênero de consideração que a maior parte do movimento anarquista passou, para você, ao largo da crítica do trabalho?

 Anselm Jappe: A  crítica  do  trabalho,  apoiada  teoricamente,  só  começou  a  se desenvolver na década de 1980, ao menos nos meios marxistas. As críticas do trabalho anteriores eram principalmente sustentadas em meios com certo componente “artístico”, como os situacionistas ou os surrealistas. Nos anos 1960-1970 também houve certa recusa prática do trabalho, seja nas fábricas na Itália, seja com os hippies. No seio da crítica do valor, vários níveis de análise estavam inicialmente misturados: uma recusa da ética protestante do trabalho; uma crítica categorial do trabalho fundada na análise do conceito marxiano de “trabalho abstrato” (conceito muito tardiamente analisado com justeza pelos marxistas); a ideia de uma substituição do trabalho vivo pela tecnologia.

A crítica “categorial” não rejeita o trabalho porque ele pode se  revelar desagradável ou cansativo. O contato com a natureza e a resistência que ela pode nos opor permanecem enriquecedores para o ser humano. Existe também uma voluptas laborandi, um prazer obtido em uma atividade que se pode ver o resultado. Da mesma forma, eu não sou necessariamente inclinado a fazer um elogio à preguiça, como no panfleto (muito superestimado aos meus olhos) de Paul Lafargue.

O problema acerca do qual insiste a crítica categorial é que o trabalho abstrato coloca todas as atividades no mesmo plano, interessando-se somente pelo fato de que elas servem para a acumulação de capital. No sistema capitalista, se preferirá fabricar uma bomba em vez de um brinquedo, caso a primeira permita realizar um mais-valor superior ao segundo. É necessário cessar esse processo de homogeneização totalitária de todas as atividades, abstração total em relação ao conteúdo de todos os trabalhos particulares. Esse reino do trabalho abstrato, além disso, tornou supérfluo, e, ao mesmo tempo, muito desagradável, uma grande parte do trabalho concreto exercido hoje em dia. Mas eu não penso com isso que se deveria encorajar uma espécie de ócio total assistido por  computadores. Não compartilho nem mesmo o entusiasmo recente por fablabs: parece-me preferível você mesmo fabricar uma cadeira de madeira do que fazê-la sair de uma impressora 3D. Sobre este ponto, pode-se se referir à obra de William Morris, o qual, depois de Marx, me parece o autor mais penetrante de sua época. Nas suas News from Nowhere ele imagina um futuro no qual as pessoas são muito ativas, mas em domínios como a agricultura e o artesanato, onde o que elas fazem é realizado por amor à beleza e ao prazer.

Assim, e eu falo aqui em meu próprio nome e não no da “crítica do valor” no seu conjunto, parece-me que uma crítica que supere o capitalismo implicará  uma enorme redução das tecnologias e a redescoberta de certa lentidão. Um exemplo banal: poder-se-ia retornar ao envio de cartas que levam uma semana até o seu destino, em vez de enviar instantaneamente um e-mail. A defesa do trabalho bem feito não me parece errada se se toma cuidado para não fetichizar o trabalho artesanal; no interior  do  capitalismo,  até mesmo o trabalho mais bem feito assume a forma de uma mercadoria, o trabalho concreto é sempre submisso ao trabalho abstrato. Sair do capitalismo é poder se dedicar ao trabalho bem feito sem entrar em concorrência com os outros produtores restantes da sociedade – neste último caso, o trabalhador artesanal é imediatamente esmagado. É igualmente pensar o sentido do trabalho, mesmo se bem feito: um operário que constrói cuidadosamente uma Ferrari terá sem dúvida orgulho, mas pode-se duvidar amplamente de sua utilidade social.

.

.

Entrevistador: Em um texto de 2003 (“Abaixo de toda a crítica”), Robert Kurz considerava que a saída  fora da  “gaiola de ferro” das categorias capitalistas seria  possível apenas por meio de  uma sociedade de conselhos e autogestão, além da forma mercadoria e da  forma- dinheiro, além do mercado e do Estado. Mas mais recentemente, Clement Homs (cujo site palim-psao guarda um grande número de textos, intervenções em seminários e conferências em torno da Wertkritik) escreveu um texto intitulado “Autogestão, armadilha para bestas?”). Pode-se tomá-lo como uma provocação a respeito de uma fórmula libertária tornada vazia. Por quais razões seria o caso, e sob quais condições, de dar novamente sentido à palavra de ordem autogestionária?

Anselm Jappe: A meu ver, a ideia de conselhos operários e aquela de autogestão são duas coisas bastante diferentes. A propósito dos conselhos, Kurz  lembra, com razão, que uma deliberação coletiva é possível a respeito de todos os aspectos da vida. É possível interrogar  as  formas  de  produção,  o  urbanismo,  a circulação…  Pelo contrário, a autogestão tal como ela foi apresentada historicamente provém da ideia de que no interior de uma unidade de produção (que permanece, então, no quadro capitalista) os próprios operários assumam a responsabilidade de gestão da “célula” em  questão (como no âmbito da Lip, na França, nos anos 1970).  Neste  caso,  as  relações  hierárquicas  no interior da unidade de produção foram modificadas, mas não a dependência em relação ao mercado exterior. Para resistir à  concorrência é preciso atingir o  mesmo  nível de produtividade que as outras unidades de produção. Isto significa igualmente que se deve produzir segundo uma relação imutável entre capital constante e capital variável. Dito de outro modo: mais vale não ser numeroso demais! E se isto não funciona, a autogestão pode chegar até a decidir democraticamente a respeito de demissões ou de uma redução de salário.

Do meu ponto de vista, o fascínio pela autogestão a que quase todo mundo aderiu nos anos 1970 se fundava em uma leitura muito redutora, que restringia as relações capitalistas a relações de dominação por hierarquia. Era isso o que propunha, por  exemplo, Socialismo ou barbárie. Este tipo de crítica constituía uma novidade em relação  a uma fase anterior da crítica do capitalismo em que se colocava o acento na questão da propriedade jurídica. Depois da Segunda Guerra Mundial, é verdade que a gestão estava fortemente desenvolvida, através do gerenciamento, das estruturas hierarquizadas (operários, contramestres),  etc. Muitos anarquistas  cometeram, então, o erro de pensar que se todo mundo  fosse colocado no mesmo nível hierárquico uma sociedade emancipada adviria diretamente. Pode-se imaginar uma unidade de produção ou uma usina onde a propriedade jurídica retorne  integralmente para os assalariados, sem  que isto nada altere no fato de que esta célula deve cumprir suas quotas de trabalho abstrato para valorização de seu capital. Parece-me a este propósito que há bastante tempo é colocado o acento apenas na dimensão visível ou subjetiva da dominação, e não o bastante  na dominação do “sujeito  automático”, tal como Marx o qualifica. Se a necessidade de servir aos imperativos automatizados do sistema está sempre já pressuposta ou, dito de outro modo, se a necessidade de investir e de valorizar o capital permanece, então não se logra senão uma gestão diferente da alienação. É até mesmo surpreendente, em retrospectiva, que isto tenha sido tão pouco entrevisto à época.

Quando existe uma rede de estruturas produtivas, como na Argentina no início dos anos 2000, a situação é, entretanto, diferente. Essas estruturas podem começar a trocar entre elas produtos e serviços. Pode-se, então, tentar separar esferas inteiras da produção capitalista. Sem isso corre-se sempre o risco de cair em uma simples gestão alternativa dos mecanismo de mercado. Infelizmente, eu não consigo me lembrar de que se tenha ido até este estágio na Argentina. Dito isto, tais situações são quase inevitáveis, estando  dada  a  extrema dificuldade de sair da lógica do dinheiro Dever-se-ia, evidentemente,se voltar para as tentativas de trocas diretas de produtos, mas seria então necessário se recolocar em numerosas estruturas produtivas, para evitar simplesmente sobreviver.

.

.

Entrevistador: Bernard Friot, com quem você debateu, propõe um salário vital e uma ampliação das conquistas da luta de classes (em primeiro lugar, a seguridade social). Ele pretende se apoiar em uma “convenção salarial do trabalho”, colocando à frente a produção de valor não-capitalista através da qualificação atribuída às pessoas (por exemplo, na função pública) e de cotizações sociais financiando o investimento no lugar do crédito bancário. Assim, a herança das lutas teria perenizado, no interior do capitalismo, setores que já lhe escapam. Tratar-se-ia, doravante, de retomar a luta de classes a fim de se libertar do mercado de trabalho e da situação de demanda de emprego. Aos seus olhos, esta  posição é típica de um “anticapitalismo truncado”. Ao que remete exatamente esta última expressão?

Anselm Jappe: As ideias de Friot formam somente, em realidade, uma parte muito pequena, e uma parte, aliás, bastante bizarra deste “anticapitalismo truncado”. Por “anticapitalismo truncado”, de maneira geral, evoco uma visão de mundo que denuncia alguns defeitos do capitalismo, mas se abstêm de qualquer critica do modo de produção. A culpa é sistematicamente atribuída ao que é chamado, na terminologia da economia política, de “esfera da circulação”, mais precisamente ao comércio (o que  encontra  ilustração  ordinária na atribuição popular da alta dos preços às manobras dos comerciantes) e ainda mais ao capital financeiro. Trata-se, aqui, de uma tradição histórica bastante longa, aquela do ódio ao usurário – com todas suas implicações antissemitas –, que no século XIX torna-se uma crítica dos bancos e da especulação. As disfunções do capitalismo são  quase sistematicamente imputadas à esfera financeira,  ao  “capital fictício”  ou,  dito  de outro modo, aos mecanismos em virtude dos quais o dinheiro poderia diretamente “fazer filhos” sem passar pela esfera da produção. Ora, Marx demonstrou muito bem que tal análise não é aceitável, pois o capital comercial e o capital usurário não são  senão deduções em relação ao capital produtivo. Em realidade, é o capitalista que deve partilhar seu lucro com a esfera comercial e a esfera usurária-bancária.

Para o anticapitalismo truncado, as coisas apresentam-se exatamente o inverso: encontram-se, de um lado, os investidores industriais que oferecem trabalho, os trabalhadores honestos, úteis à sociedade, e, de outro lado, aqueles que roubam este trabalho através do crédito, de juros e de especulação. Esta grade de análise encontra suas raízes  no  século XIX, como  eu  já lembrei mais acima,  desenvolvendo-se  entre as duas Guerras Mundiais com o movimento fascista e o antissemitismo, que a consideram um modo de explicação muito cômodo. Com a época neoliberal e o voo do capital financeiro, este anticapitalismo truncado voltou com força, oferecendo uma leitura superficial e simplificada dos enormes lucros açambarcados pelos bancos. Não está em questão duvidar que os banqueiros e os especuladores sejam tipos sujos, mas é falso acreditar que eles estão na origem da crise. Eles mais forneceram as “muletas” sem as quais o capitalismo teria já desabado há muito tempo por falta de rentabilidade – e com ele todos os postos de trabalho e investimentos “úteis”, os quais até mesmo as correntes de esquerda defendem. É demasiado fácil, no melhor dos casos, e muito perigoso, no pior – não se está longe da oposição estabelecida pelos nazistas entre o capital “produtivo” e  o capital “ganancioso” –, supor que exista 1% de maldosos especuladores e políticos corruptos em oposição a 99% de trabalhadores honestos. É confundir as causas e as consequências do problema.

É necessário ainda evocar o papel devotado ao Estado e a fortiori à nação pelo anticapitalismo truncado. Em numerosos casos – nem sempre, certamente – ele tende em direção a alguma forma de soberanismo (de direita, de esquerda ou transversal). Na França, diversos são os representantes que têm papel de destaque. Vê-se com Frédéric Lordon, os economistas “atterrés”, as proposições de saída da União Europeia com vistas à recuperação da soberania nacional… Eu não irei, é claro, defender a União Europeia, mas uma França sozinha seria ainda mais presa aos mercados financeiros internacionais. Nenhum Estado atual se financia totalmente sozinho, ele vive graças aos empréstimos que ele pode obter no mercado internacional, dependendo para isto das agências de notação.

Quanto ao próprio Friot, eu confesso não compreender verdadeiramente o que ele imagina. Ele não empreende nenhuma crítica do salário nem do trabalho, mas deseja, em vez disso, estendê-los ao mundo inteiro! Parece-me que isto aparenta o que ocorreu nos países do Leste, onde havia uma obrigação de trabalhar e de receber uma espécie de salário mínimo. Digamos que proposições deste tipo, ou ainda aquela sobre uma renda universal, eludem totalmente o fato de que existe um limite interno ao processo de valorização do capital. Pensa-se tranquilamente que se continuará a produzir dinheiro válido e que não se trata, no fundo, senão de assegurar uma distribuição diferente. Isto reúne o quadro geral da escola da “regulação” na economia política, a ideia dita keynesiana segundo a qual é preciso dar mais dinheiro aos assalariados a fim de que eles possam melhor recomprar as quinquilharias que eles produzem. E quase tudo isso que se enfeita hoje com o nome de “esquerda” (esquerda “radical”, esquerda “da esquerda”, esquerda “extrema”) confina-se no interior desta ótica keynesiana, com uma defesa explicita do trabalho.

Quanto à renda universal, é uma proposição irrealista. Ela conta com  a  continuação indefinida da máquina capitalista. Ela não tem nada de revolucionária. Não é por acaso que o primeiro a propô-la foi Milton Friedman. Historicamente, aliás, existia alguma coisa parecida no final do século XVIII na Inglaterra, com a ajuda aos pobres abrigados, em geral, pela paróquia. Karl Polanyi mostrou bem em A grande transformação como esta ajuda vinha em suporte ao capitalismo, em favor da pressão para baixar os salários. Hoje em dia a direita defende igualmente esta medida, como um meio permitindo caçar todas as outras formas de ajuda. Trata-se apenas de distribuir de outra maneira a mesma bagatela hoje repartida sob a forma de RSA[2]. Se fosse instaurada, a renda mínima reforçaria o funcionamento da sociedade em duas velocidades: uma parte viveria bastante miseravelmente com renda enquanto a outra trabalharia. No próximo agravamento da crise econômica, o primeiro corte afetaria esta renda. Seu único mérito, do meu ponto de vista, é permitir ao menos discutir a centralidade da ética do trabalho.

.

.

Entrevistador: Uma das especificidades da crítica do valor é que ela prevê o colapso do capitalismo, não tanto, como repetiram numerosos revolucionários, sob os golpes de seus adversários, mas pelo fato de sua autodestruição. O capitalismo teria, de fato, encontrado os limites da valorização do valor. Toda potência das finanças seria, neste sentido, sintoma e não a causa da crise profunda do capitalismo. A especulação, longe de perturbar uma economia saudável, teria assim permitido continuar durante anos a ficção da sociedade capitalista enquanto esgotam as categorias de base do capitalismo. Mas hoje se vê os limites disso. Então, é para quando este colapso? E, sobretudo, o que fazer?

Anselm Jappe: Digamos que o colapso foi ontem! No sentido de que ele está já se produzindo, certamente com grandes diferenças e em velocidades diferentes segundo as regiões do mundo e as camadas sociais. Esse processo, que se propaga ao longo de décadas, começou aproximadamente a partir 1972. A crise se manifesta sob três aspectos principais. Desde 1971, com o fim do padrão-ouro, o capitalismo se depara com um limite interno à valorização. Isto estimula o capital financeiro, desde então independente da produção real. A partir deste momento, a última salvaguarda escapa. As economias ocidentais entram em uma recessão que elas não saíram mais depois, salvo por muito breves momentos. Ao mesmo tempo, em 1972, aparece o relatório do Clube de Roma, que ilustra o segundo limite que o capitalismo deve enfrentar, fazendo a crise ecológica passar pela consciência geral. Por fim, tem o choque do petróleo que soa o alarme da abundância energética, mesmo se ele estava inicialmente ligado sobretudo a questões geopolíticas. Não é por acaso que essas três crises aparecem no mesmo momento; são sintomas do colapso.

Hoje, mesmo nos países mais ricos, o número de pessoas vivendo em condições piores do que anteriormente aumenta. Para tomar o caso da juventude, quando eu pergunto aos meus estudantes se eles têm o sentimento de deslizar sobre um declive em que a única coisa a fazer seria tentar deslizar um pouco menos rápido do que os outros, muitos me respondem que sim. Existe, sem dúvida, diferenças entre países, velocidades diferentes. Alguns chegam a lidar com habilidade, enriquecendo-se a expensas dos outros. O “milagre econômico” alemão não se deve tanto ao fato de que os alemães “trabalham como loucos”, mas bem mais a que a Alemanha consegue descarregar suas dificuldades nos seus parceiros europeus. Na Grécia, ao contrário, o colapso já se instalou largamente. Continentes inteiros, como a África, sucumbiram. Não se trata, portanto, de uma profecia para o futuro. A eleição de alguém como Trump, aliás, simboliza bem uma política do desespero: em face da ideia de que tudo desaba, coloca-se no poder alguém que se pensa que poderá salvar provisoriamente algumas pequenas coisas.

No que concerne à parte “prática” da questão, é necessário lembrar que a ideia de limite interno do capitalismo era pouco presente na história do movimento operário e do marxismo clássico. Pensava-se que o capitalismo podia se desenvolver infinitamente sobre suas próprias bases, e que apenas a vontade consciente de seus adversários estava à altura de colocá-lo a termo. Ora, o capitalismo minou suas próprias bases perseguindo sua lógica cega. Não existe nenhuma garantia, contudo, que alguma coisa  de melhor lhe sucederá. Hoje o problema não é tanto colocar abaixo o sistema, mas saber como evitar que este desmoronamento se torne uma catástrofe definitiva. Como desenvolver alternativas? Como tomar esferas inteiras da produção da vida do setor capitalista? Aqui, muito felizmente, as dimensões macro e micro podem se reunir. Não se pode sempre fazer tudo na pequena escala (como no exemplo acima citado da Argentina em uma situação de colapso, quando começa a generalizar outra forma de vida), mas é possível, cada um, começar no imediato. Mesmo se eu não estou verdadeiramente de acordo com os porta-vozes do decrescimento, eu acredito que a ideia é boa: pode-se, pessoalmente, começar a viver com muito menos, a recusar a lógica consumista. Valores como a conviviabilidade podem contribuir para reduzir as formas de dependência, assim como a necessidade de sempre trabalhar mais para pagar este tipo de comodidades.

.

.

Entrevistador: No capítulo sobre a “trajetória da produção”, depois de ter analisado a contradição interna do capitalismo entre aumento da massa de riqueza real e diminuição da produção de valor, Moishe Postone considera uma forma de vida fundada na tecnologia avançada, tornada meio à disposição dos homens e não mais vetor de uma dominação abstrata. O que está prefigurado aqui parece ambíguo: poder-se-ia, com efeito, imaginar uma versão “tecnofila” da crítica do valor. Você escolhe, da sua parte, uma abordagem mais crítica da tecnologia, por quê?

Anselm Jappe: Historicamente, o automatismo tecnológico e o automatismo do valor funcionaram conjuntamente. O capitalismo iniciou seu verdadeiro crescimento somente no século XVIII, quando ele se aliou ao desenvolvimento tecnológico. A dinâmica do capitalismo foi impulsionada adiante graças às invenções tecnológicas, que permitem economizar trabalho e obter mais-valor suplementar ou ainda controlar populações. Essas tecnologias são, além disso, sempre apresentadas como um tipo de fatalidade em face à qual a sociedade no seu conjunto deveria se confessar impotente, como ela também deveria  fazer em face da economia. O dito “não se para o progresso” anuncia isto claramente! O que não significa, em absoluto, que não exista tecnologia que se possa fazer outro uso, mas este não seria possível senão em um quadro totalmente diferente, retomando as coisas desde o início.

As lutas sociais mais promissoras são geralmente aquelas que se desencadeiam contra aeroportos, contra centros de lazer, contra barragens ou ainda contra os Organismos Geneticamente Modificados. Não se trata somente de preservar o meio- ambiente, mas de defender outros modos de vida, de novas formas de autonomia, e cessar a heteronomia total em face das tecnologias e em face do mercado. A autonomia é uma ideia importante, que recomenda depender o menos possível de tecnologias sobre as quais nós não temos nenhum controle. Autonomia não significa autarquia, mas, no mínimo, a possibilidade de escolher. É evidentemente mais cômodo ter calor apertando um botão do que indo cortar madeira na floresta para alimentar a lareira, mas se nós possuímos o botão nós devemos também aceitar as consequências que se seguem. Isto  é tão mais difícil que nos tornamos servos do que Mumford chamava de “Megamáquina”, da qual não é possível escapar completamente, exceto se se cair em posições primitivistas, que eu não partilho completamente. Permanece ao menos possível reduzir consideravelmente nossa dependência desta “Megamáquina” tanto tecnológica quanto econômica.

O discurso do decrescimento, colocando as questões da felicidade individual, do ritmo de vida, etc., vai além de quase todas as formas do marxismo tradicional. Ele não é, todavia, isento de problemas – excluindo de imediato os apoiadores de um decrescimento que se limita, grosso modo, ao fato de recuperar os legumes no final da feira. Assim, é raramente o capitalismo enquanto tal que é criticado, mas seus efeitos mais visíveis: a “sociedade de consumo”, a publicidade… Ora, o essencial é ver que a lógica do valor demanda que a quantidade de valor seja sempre maior. O capitalismo é, portanto, necessariamente produtivista: com o aumento da produtividade, uma hora de trabalho deve se realizar em dez camisas, depois vinte camisas, etc. Se não se ataca este mecanismo de base, não é possível sair da lógica do crescimento. Os defensores do decrescimento hesitam geralmente em face disto, ou o admitem somente em teoria, buscando muito rapidamente uma realização política imediata. Daí por que eles acabam às vezes por flertar com partidos como o PS[3], avançar receitas neokeynesianas ou propor seus serviços à Comissão Europeia. Tudo isso está arriscado desembocar em outra forma de anticapitalismo truncado, mesmo se a ideia de conviviabilidade é bem mais simpática do que aquela de Bernard Friot, que parece querer reduzir a sociedade a uma imensa cantina social da administração pública!

.

.

Notas

[1] « Sortir du travail ? », Entretien avec Anselm Jappe dans le n°38 de la revue « Réfractions. Recherches et expressions anarchistes » (printemps 2017).

[2] Revenu de Solidarité Active – Rendimento de Solidariedade Ativo, regime francês de proteção social.

[3] Partido Socialista Francês.

.

Fonte Original: Revista Réfractions, nº 38 – Recherches et expressions anarchistes (printemps 2017)

Versão em português (Tradução de Pedro Henrique de Mendonça Resende): https://ocasocial.wordpress.com

Comments are closed.

%d bloggers like this: