O PT, a crise e a economia política da barbárie
– Por Marildo Menegat –
A nova direita não é conservadora no mesmo sentido da velha direita. Esta era uma reação à dissolução das raízes agrárias das sociedades tradicionais em processo de modernização, enquanto a nova direita que está em cena é uma reação à dissolução catastrófica da sociedade urbana em curso desde os anos 1990. Porém, diferente da esquerda política (marxismo tradicional), sua reação não é a defesa de uma volta a algum tempo perdido do passado – mesmo quando isso aparece eventualmente em seus discursos, como no saudosismo pela ditadura militar, isto tem força marginal no argumento. Antes, ela é o desejo incontido de se livrar de alguém que, no fundo, estorva e ameaça a continuidade ou melhora do seu padrão atual de existência.
Resumo
O autor articula em três planos o argumento de que se chegou ao fim de um período curto da história recente do capitalismo, marcada por uma crise estrutural, em que ainda foi possível uma gestão da barbárie (administrar a regressão social sem sobressaltos e rupturas abruptas da ordem institucional). No primeiro plano, se defende que o lugar do PT na história, como um tipo original de partido surgido na era do colapso da periferia do capitalismo, foi o de realizar programaticamente (e pragmaticamente) a gestão da barbárie. No segundo plano, se apresenta o conceito de ‘economia política da barbárie’ e se traça um paralelo entre a sua primeira apresentação histórica na Alemanha dos anos 1920 e a sua forma constitutiva na conjuntura atual, para, na última parte, se defender a ideia de que a ‘nova direita’ não pode ser reduzida ao conceito de nazi-fascismo. Ela é um fenômeno regressivo muito mais monstruoso e precisa ser entendida em sua novidade e amplitude destrutivas.
Palavras chaves
Crise do capitalismo; gestão da barbárie; crítica da economia política da barbárie.
Fontes:
METAXY e Ensaios e textos libertários (Arlindenor)
I
Poucas vezes na experiência brasileira foi possível se assistir em câmera lenta e – ainda por hora – sem ferimentos graves e escoriações expostas a um desmoronamento político nas proporções do ocorrido entre 2015-16. A destituição da presidenta Dilma Rousseff encerrou um ciclo da esquerda no país. Sua derrota não foi um erro de cálculo do estratego providencial – se bem que isto esteja presente como argumento racionalizante da inconsciência do que são estes tempos que queimam sem horizonte -, mas os limites de um governo de esquerda na condição atual de crise do capitalismo. Faz muito tempo que o petismo se descobriu uma força saída da cartola de um feiticeiro, seja lá quem ele for. A sua adesão ao realismo político não se realizou como um mero oportunismo de uma direção traidora do programa revolucionário que, na verdade, nunca existiu. O PT já nasceu como produto de um tempo em que as revoluções andavam escassas e em baixa – em geral, de sinal trocado, como foi o caso das restaurações de veludo que se seguiram ao colapso dos países socialistas no leste europeu. Talvez, por isso, suas lideranças intuíram que a mística que os envolvia não seria, neste momento histórico, algo mais do que a tentativa de direcionar forças sociais impessoais, de letalidade crescente e assombrosa, para um leito benigno de soluções inovadoras para o bem de todos[1].
Será por muito tempo difícil arrumar pontos comuns de interpretação do que foram os últimos 35-40 anos da vida nacional, mas eles se farão urgentes, e no centro deles estará a esfinge do PT para ser decifrada. A resposta mais frequente e comum dada a esta inquirição pensou o PT como um instrumento tardio e inovador da modernização incompleta do país que precisava sem demora ser concluída. Que este Iluminismo fora de época tenha sido hegemonizado por variantes do marxismo tradicional[2] não mudam em nada a matriz modernizante, apenas confirma a fraqueza de sua compreensão crítica do capitalismo e a expectativa de que este ainda possua alguma potencialidade emancipatória. A própria conjuntura de origem do PT ajudou para que as respostas ao enigma embalassem um “bebê de Rosemary”. O movimento democrático que pôs fim a 20 anos de ditadura militar foi a fiel expressão de uma sociedade de massas, na qual o Brasil havia entrado de cabeça neste período (1950-80), sendo que a ala esquerda deste movimento democrático era constituída por diferentes movimentos sociais dirigidos pela autoridade e força do sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista. A unidade do processo que fundou o PT se deve em parte ao vazio produzido na esquerda com o esgotamento da hegemonia pecebista-populista após a derrota em 1964. Sendo que a luta armada que se seguiu a estes anos nunca foi uma alternativa a este vazio, mas tão somente um limbo impotente, que ensaiou uma resistência diante de forças abismais, para que a chama da esquerda não se apagasse totalmente. E é nesta espécie de heroísmo menor que reside seu modesto lugar na história.
O espelho em que o PT procurou elaborar sua imagem revela uma história de peças autocompreensivas que foram sendo deixadas de lado por falta de sustentação no curso desastrado que o mundo adotava. A rapidez com que estes debates foram deixados de lado reveste-se de grande interesse, pois mostra o quanto este tempo foi uma aceleração contínua de um tempo de crise, em que as definições nunca foram mais do que provisórias – “até o dia em que a mão encontrou sua luva”. A primeira destas grandes contendas foi aquela em que o partido se viu obrigado a esclarecer seu caráter – se seria um partido eleitoral de massas ou revolucionário? -, e foi feita no velho molde da discussão entre social-democratas x esquerda revolucionária dos anos 1910. O inusitado da situação não era apenas o absurdo sugerido pela distância de duas guerras mundiais e uma ditadura militar que a separava do tempo originário deste debate. Ele aparecia também, e principalmente, na forma inovadora em que surgia este partido: uma agremiação ‘espontânea’ (arredia a formulações teóricas e a qualquer aprofundamento do debate que a distanciasse de um eixo prático), ao mesmo tempo em que era uma síntese dos fragmentos a que se reduzira o processo de modernização já no início do seu colapso e que, no entanto, não era percebido como tal[3] . Justamente por esta razão era possível se pensar o partido como a força propulsora da conclusão ‘civilizatória’ desta modernização a ser realizada politicamente pela classe trabalhadora (conceito este que por aquela época guardava um certo estranhamento, uma vez que se tratava de uma inovação que desbancava o realismo do uso corrente que se fazia do conceito de operariado), cuja heterogeneidade da composição era concebida mais como um resultado do atraso a ser suprimido – e que, por sinal, teria sido aprofundado pelas alianças políticas conservadoras que sustentaram o regime militar -, do que, como mais tarde ficou evidente, devido ao limite em que o trabalho como fundamento da sociedade burguesa havia ingressado[4]. Este debate, porém, não durou muitos anos. Já no 5º Encontro Nacional do PT (1987) as resoluções programáticas assinalaram uma mudança de expectativas em relação a este debate e, ao invés de um esperado salto de autocompreensão, ocorreu a inflexão para outro dilema. O novo tempo do mundo se fechava, mas naquele momento ainda restavam espaços para simulações. Na linguagem gramsciana de tais resoluções, se formulava o entendimento do início de uma época de acúmulo de forças e de luta por hegemonia (e este é outro conceito chave para se entender, no caso, a metamorfose de social- democratas, ex-trotskystas, stalinistas reciclados, etc. que fundou uma convergência – não saberia dizer se socialista – que deu ao PT uma estrela a ser seguida e estabilidade duradoura) que deveria potencializar a realização de reformas que, na expressão de um dos teóricos de então, seriam revolucionárias caso atingissem a estrutura da concentração de riqueza e poder das classes dominantes. Muita gente compreendeu a mensagem, e não demorou para se começar a dizer (num mantra repetido até ontem) que reformas democrático-populares numa sociedade horrorosa como a brasileira seriam uma ‘verdadeira’ revolução. A conversão do PT às reformas (revolucionárias) também não durou muito. Em 1992 foi lançado um livro com o sentido profundo e, aparentemente, oculto, da nova chave em curso: o modo petista de governar (BITTAR: 1992). Neste livro, as experiências de ‘gestões democrático-populares’ do partido em prefeituras de diferentes regiões do Brasil serviram de laboratório para o desenvolvimento de técnicas inovadoras de ‘inversão de prioridades’ do uso do orçamento público[5]. Se se pode dizer que o PT um dia teve um programa, esta foi a sua natureza: um modo de governar que tinha na intenção do socialismo o papel de um tipo ideal de modernização a ser concluída por meio de políticas públicas, apesar de cada vez mais inviabilizadas pela violência da crise e dos acontecimentos mundiais. Por hora, observe o ( a) leitor(a) que a densidade da crítica ao capitalismo nestas formulações se concentra basicamente no seu modo de ser, nunca na negação de seus fundamentos constitutivos. Não será fácil entender se foi o espelho que envelheceu e embaçou as imagens, ou se foram as imagens que foram ficando fracas e desgastadas. No início do século XXI, quando Lula venceu as eleições presidenciais, o vigor dos movimentos que deram origem ao PT já estava extinto. Não havia qualquer ascenso da luta de classes na rua, a não ser as 230 mil famílias mobilizadas pelo MST na beira de estradas distantes[6]. A crise que já havia destruído as forças ‘progressistas’ nacionais, tornando inócuo qualquer esforço de desenvolvimento nesta altura da história do capitalismo, realizou também um concomitante e imponente apagão intelectual[7] no outrora centro democrático, de onde pulsava uma das vertentes modernizadoras antioligárquicas do país; e, na segunda curva do rio, extinguiu a base material dos movimentos sociais que deram origem ao PT, a começar pelo movimento sindicai[8].
O que se tem chamado de lulismo (SINGER: 2012; 51 e ss) não é um produto maior nem separado do PT. Como líder moderno numa sociedade de massas, a figura de Lula foi constitutiva de um partido que sempre se definiu como uma força de classe numa época histórica em que a sociedade burguesa com suas duas classes antagônicas bem definidas já havia desmoronado há tempo[9]. Apenas como líder operário, vestido de macacão azul, nosso personagem, desde os tempos em que trabalhava na fabrica de elevadores Villares, percebeu que não teria futuro político. Portanto, a partir de 1989, Lula foi produzido com a participação e entusiasmo do PT como um moderno líder de massas. As origens sociais deste tipo de liderança são apenas parte de um mito que serve para dar força mística ao projeto de se chegar ao poder. Portanto, quando as massas, que já não cabiam no conceito de operariado, passaram também a não caber no conceito de classes trabalhadoras – a não ser que o conceito de trabalho seja reduzido a uma sociologia vulgar e descaracterizado de sua definição dada pela economia política –, viram em 2002, na figura do líder, um personagem providencial, este fato foi um misto de acaso e consistência de uma trajetória que se fundiram para produzir os últimos anos da história do PT. Nesta fase, o modo petista de governar deu ao partido seu caráter definitivo de ser um competente gestor da barbárie, e – ao que parece – este será o lugar original que o PT ocupará na história.
Para se entender este constructo emblemático do lulismo é necessário explicar um pouco mais qual o conteúdo que está presente na expressão consistente trajetória histórica. A formação do PT, diferente de outros partidos tradicionais, como PMDB, PSDB, DEM, etc., foi essencialmente um resultado do que havia de novo no seu tempo. Trata-se do único partido com alcance de massas no Brasil. Semelhante invenção existe apenas nas igrejas pentecostais, que também são, ao seu modo, fenômenos de organização de massas. Lula da Silva e Edir Macedo, nesse sentido e em diversos níveis, são absolutamente contemporâneos, se bem que os propósitos e a mística de Lula ainda sejam distintos do caráter de ralé (ARENDT: 2012; 218 e ss) que Edir Macedo representa. Tanto o PT como qualquer igreja pentecostal, para existirem, precisaram de um contato direto com as massas. O PT, na fase de sua construção, nos anos 1980, formou milhares de militantes que representaram uma força viva da democratização do país e da disseminação de hábitos republicanos, como a disposição para o debate e a polêmica. Uma de suas maiores qualidades era a capacidade de pensar coletivamente e de debater com a sociedade seus rumos – por mais ilusórias que fossem suas propostas. Esta militância treinada foi consolidando, com o passar dos debates internos e suas definições, o que Robert Michels chamou de lei de ferro da burocracia[10]. Na fase mais recente da história do PT, acompanhando o aprofundamento da regressão à barbárie da segunda metade dos anos 1990, esta burocracia se especializou em conceber técnicas de ‘governabilidade social’ – como se diz no jargão partidário. Quando Hugo Chávez, na Venezuela, tentou replicar alguns aspectos deste modelo de gestão, logo percebeu que lhe faltava este patrimônio da militância – e buscou suprir tal falta na disposição colaboração dos cubanos com assessoria técnica atualizada e inovadora de brasileiros. Outro aspecto que tornou possível a elaboração das técnicas de governabilidade social foi a imensa quantidade de dados e estatísticas que a burocracia estatal produz – IPEA, IBGE, PNAD, censo, etc. De posse destes dados e com as técnicas já testadas em administrações locais, foi possível replicá-las com relativo sucesso na governança nacional. Será pouco provável que a eficiente gestão da barbárie que o PT criou seja mantida, não apenas por razões do aprofundamento da crise e da falta de dinheiro, ou mesmo pela mera falta de vontade política dos partidos conservadores que o desalojaram do poder em 2016, mas, principalmente, pela perda desta máquina de cargos de confiança que são o savoir fare de engenharias sociais como Bolsa Família, ProUni, Pronera, Pronaf, Peti, etc, cujo segredo não está no Estado, e sim “numa cultura a partir de um projeto” do PT[11]. A ação destes militantes organizada por um modo de governar produziu a sutilidade de uma intencionalidade que, por razões bastante complexas, não encontrou mais respaldo no frágil equilíbrio do arranjo social que a sustentou durante 14 anos.
Há dois aspectos importantes para se pensar o que vem por ai depois do desmoronamento. O primeiro é que uma máquina de influência absolutamente moderna como o PT, cuidadosamente pouco ‘ideológica’, não chegou ao fim dos seus dias. Irá por certo se renovar, porém, qual a linha destes novos dias não é possível ainda saber. O outro aspecto é mais importante. O colapso da sociedade brasileira entrou num tempo de aceleração. Uma economia política da barbárie se consolidou e é ela que explica os movimentos de alterações dos direitos trabalhistas, das aposentadorias, do teto de gastos e, inclusive, do campo de conduta dos indivíduos cuja liberdade de escolha os direitos humanos tentavam preservar. Esta nova intencionalidade, mais crua e brutal, precisa ser entendida para além de simples maniqueísmos políticos, pois, ao que tudo indica, nunca esteve ausente no período anterior que por hora findou.
II
A ideia de uma economia política da barbárie pode parecer um pleonasmo, como se esta forma social fundada nas objetivações abstratas do trabalho pudesse ser mais do que um tempo da pré-história da humanidade (MARX). A diferenciação que este conceito procura estabelecer, porém, é um corte histórico para explicar uma época em que as práticas da esfera econômica da vida social precisam se utilizar da rapina e do saque com uma frequência acachapante, ao ponto de se tornarem leis gerais que, por alguma razão alheia ao entendimento dos indivíduos nelas envolvidos, são pressentidas como necessárias para que tudo não desmorone. A diferença destas práticas com a ‘assim chamada acumulação primitiva de capital’ (MARX), é que elas surgem historicamente em países capitalistas cujas formas essenciais da sociabilidade de uma sociedade produtora de mercadorias estão constituídas, depois de há muito o capitalismo ter superado sua fase originária e, portanto, não ter por finalidade direta expropriar os produtores de seus meios de vida para impor o trabalho assalariado. Logo, não se trata da destruição e conquista de uma formação social não-capitalista, mas de uma fuga para frente da acumulação de capital, quando esta já bateu no limite. A primeira vez que estas práticas aparecem amplamente no ocidente ‘civilizado’, salvo engano, foi pelas mãos do nazismo na década de 1930.
A estupidez da irrupção organizada do mal-estar em que a sociedade burguesa se vê com relativa frequência arrastada desde o início do século XX, em que as massas sã mobilizadas e instrumentalizadas politicamente, ganhou no nazismo contornos que merecem ser sondados nesta chave explicativa de um modelo da economia política da barbárie. O sentido metódico da destruição que o nazismo representou até hoje desconcerta, tanto porque, a princípio, uma destruição deveria ser o oposto de uma atividade ordenada, algo como a força explosiva de uma dinamite, como também porque não precisou de qualquer preparação ou treinamento para ser realizada com o esmero e empenho de boa parte dos alemães. A mesma racionalidade que mantinha em pé a sociedade foi espontaneamente usada para perseguir e linchar grupos sociais conceitualmente definidos’ como inimigos da nação[12]. Ao que parece, esta estupidez e (ir) racionalidade estavam dadas a priori e faziam parte naturalmente do modo constitutivo da totalidade social. Sua intencionalidade, no entanto, ainda não havia sido posta e dirigida a serviço de uma destruição voluntária daquelas proporções. Uma das características conhecidas do capitalismo é reduzir em grande medida a forma de existência dos indivíduos às necessidades da economia. Transformar as pessoas em força de trabalho e impor sua mercantilização como único meio de sobrevivência foi um dos capítulos mais brutais deste modo de produção. Este processo de reificação, como já assinalou alguém[13], não produz nenhuma consciência que não seja o reflexo imanente das leis deste sistema. Trata-se de uma luta pela sobrevivência mantida nos níveis mais vulgares de uma animalização socialmente condicionada.
Robert KURZ (2014: 247 ss) na exposição do seu conceito de crise, observa que o limite lógico do capital já está presente nas crises da segunda metade do século XIX. A cada nova crise, desde então, este limite vai enfrentando dificuldades crescentes para remover as barreiras que se opõem à acumulação, o que obriga o capital a produzir mecanismos de compensação que funcionam como verdadeiras fugas para a frente, adiando o tempo de uma crise sem saída e, ao mesmo tempo, preparando uma letalidade (da natureza e da humanidade) sempre maior no seu desenlace. Assim, o aumento da composição orgânica do capital produziu legiões de desempregados na Europa desde o final do século XIX, que puderam se socorrer da desgraça anunciada graças à fome de mão de obra da economia norte-americana e da expansão imperialista. Contudo, estes mecanismos perderam em parte sua força nas primeiras décadas do século XX. Na Alemanha dos anos 1920, após a derrota da Primeira Guerra, a massa de desempregados será enorme e não poderá contar com a imigração em massa como solução do seu dilema existencial. Depois da crise de 1929 ela chegará, na época da tomada do poder pelo partido nazista, a 6 milhões de pessoas. São massas humanas cuja sobrevivência foi reduzida ao elementar das necessidades animais do corpo e seus instintos reificados – que fazem a vez de uma racionalidade reflexiva que foi extorquida pelo próprio processo social – não fazem muito mais do que refletir as leis da economia[14]. Pouca ou nenhuma resistência podem oferecer aos horrores que o desespero liberta nestas horas. Como a concorrência é a lei da gravidade da existência social nestas condições, onde não cabem todos, que se reabilite o leito de Procusto. O sentido de muitas ações do nazismo, transbordantes de irracionalidade, pode ser encontrado na racionalidade desta lógica da economia política de saque.
A construção de instrumentos de terror pelo Estado policial nazista é uma boa medida do que aqui vai dito. Deles fizeram parte a reabilitação da pena de morte, os campos de concentração, além de revisões draconianas do Código Penal a partir de 1933[15], configurando um sistema de construção, reconhecimento e controle dos chamados ‘inimigos internos’, que permitiu ao Estado mobilizar a explosão de ódio resultante de condições muito frustrantes da existência de milhões de indivíduos na legitimação e organização do trabalho forçado em larga escala e do saque generalizado de riquezas que seriam pretensamente usadas para o restabelecimento da grandeza da pátria, perdida após a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919. O primeiro nível desta organização coletiva da brutalidade se concentrou no uso hipertrofiado do sistema penal, em que a sua função então central serviu para a mobilização de todos os esforços da sociedade para saltar o relativo atraso da Alemanha em relação aos seus competidores diretos no mercado mundial. Para isso, o incentivo de um espírito sacrificial, que pudesse contribuir para a imposição de regimes de trabalho intensificados, foi a tônica. A pena como privação de liberdade, por exemplo, andou naturalmente abraçada ao trabalho[16]: este, diz EVANS (2014: 113), “estava se tornando uma função cada vez mais importante dos campos. Contudo, a mão de obra era sacrificável, e as condições dos novos campos eram mais duras que em seus predecessores em meados da década de 1930″. Por esta mesma época, dois autores judeus alemães – George Rusche e Otto Kirchheimer[17], escreveram uma obra pioneira sobre a origem das prisões no capitalismo, e observam que um dos princípios que organiza o regime prisional em cada país é a less eligibility, em que o tratamento dado ao apenado nunca deve ser melhor do que as condições de vida das camadas mais pobres desta sociedade. O nazismo modificou o referencial desta lógica. Ele fez as massas perceberem que era possível um degrau mais baixo da existência -aquele reservado aos inimigos nas prisões e campo de trabalho forçado -, em que os sacrifícios e sofrimentos poderiam ser piores do que a pobreza abjeta que era comum – e deveria ainda continuar sendo por anos – entre os trabalhadores arianos[18]. Conseguiu, dessa forma, induzir – pelo medo que os instrumentos de terror criavam – algo como a “nacionalização das atitudes e dos sentimentos da maioria dos indivíduos” (MARCUSE: 1997, 148). De uma espécie de garantia civilizatória mínima que tal princípio define, o padrão nazista das prisões passou a deixar visível o estado de barbárie como medida para toda a nação. O segundo nível dos instrumentos de terror, concomitante ao primeiro, era a forma mais crua da economia de saque, que pode ser vista na politica de “arianização da economia”, que se iniciou com a remoção de todos os judeu-alemães de cargos públicos[19] e prosseguiu na sua “expropriação (…) pelo regime[20], uma vasta campanha de pilhagem com poucos paralelos na história moderna” (EVANS: 427). Este “sistema de pilhagem, expropriação e peculato” (idem: 458), ampliado para a rapina de nações inteiras, permaneceu a todo vapor nas invasões alemãs durante toda a Segunda Guerra Mundial. Tal sistema foi, no todo, uma economia política de imposição por meios de terror de um regime forçado de mais trabalho na retaguarda e de “despedaçamento da substância física das economias nacionais arruinadas” (KURZ: 2016; 41) no front da guerra.
III
Mudanças de comportamento coletivo tão acentuadas e, aparentemente, repentinas, podem ter muitas causas. Num tipo de sociedade em que, como foi dito, a existência é reduzida às funções econômicas, o comportamento grupal dos indivíduos, por um instinto de sobrevivência, inclina-se a seguir as necessidades dos movimentos inconscientes desta estrutura e sua dinâmica. Eles acabam personificando estas funções – o que Marx chamou de ‘máscaras de caráter’ – como se fossem um modo seu de ser, absolutamente pessoal e intransferível. São em parte, na definição do seu comportamento social, personificações de um ‘enredo teatral’ cujo fim desconhecem, não obstante pressentirem estar em jogo nesta representação a decisão sobre a conservação ou não de sua sobrevivência nos padrões que lhe são habituais. Para um autor como Norbert ELIAS (1997: 42), este é o problema chave de qualquer processo civilizador, ou seja, “como as pessoas conseguem satisfazer suas necessidades animalescas elementares, sem reciprocamente se destruírem (…) ou causarem repetidos danos umas às outras em busca dessa satisfação”. O nazismo corporificou, em certo sentido, a aparição prematura na história de um tipo de máscara de caráter das formas de existência impostas pelas condições de uma economia política da barbárie. Ele, entre outras coisas, representou a reação do homem branco (ariano)[21] à primeira experiência histórica de dissolução da sociedade urbana industrial durante a grande depressão dos anos 1930, quando se viu curvado diante dos limites lógicos internos do capital que produziram, como um de seus efeitos explosivos, entre tantos outros, uma sobra de seres humanos – sobra se considerados na habitual, e no capitalismo incontornável, forma existencial total de força de trabalho – em muito superior à expectativa da população relativa então existente. Foi um monstro do seu tempo cuja monstruosidade ainda podia ser mandada de volta às trevas de onde veio. Os mecanismos de compensação que o capital produz para forçar suas fugas para frente nestes momentos de presentificação dos limites lógicos, naquela ocasião, que incluiu, como condição desta fuga, uma destruição inaudita da Europa e parte da Ásia, ainda tinham um horizonte de manobras para a acumulação bastante promissor com a expansão do fordismo. No entanto, enquanto esta máscara de caráter brutal foi necessária, como uma intencionalidade social, ela representou “uma tendência latente para soltar-se, para afrouxar o controle da própria consciência, para a violência e a brutalidade – tendência essa que, enquanto coerção externa do controle estatal (…), só podia, no máximo, manifestar-se informalmente nos interstícios privados da rede de controle do Estado – tornou-se formalizada e, para os grupos institucionalizados, elevada a um tipo de comportamento exigido e sustentado pelo próprio Estado” (ELIAS: 390).
Não é possível ir muito mais longe nas comparações de hoje com a conjuntura das duas grandes guerras no século XX. A crise atual é uma forma mais ampla e profunda daquela. Suas saídas, portanto, são mais breves e abertamente destrutivas, sem que com isso se acrescente, ao serem acionadas, qualquer acumulação nova de valor ao capital. As bolhas especulativas, que são um desses mecanismos de compensação da atualidade, simulam grandezas abstratas de riqueza sem substância (trabalho vivo) que, a cada estouro, afundam mais profundamente a humanidade no pântano de uma dessocialização catastrófica (KURZ). Além desses limites comparativos, o parentesco da nova direita com o nazismo mantém diferenças relevantes. Aquela figura de horror do espírito, que foi a máscara de caráter do nazismo, não é a mais adequada à sociedade atual. O fim do mundo que foi vivido com a clareza do extermínio em massa dos campos de concentração e da destruição radioativa nos anos 1933-45, após os 30 anos de trégua que o fordismo representou, voltou a campo com força e potências multiplicadas. Sua atuação não é um acontecimento isolado, mas o curso sólido em que a humanidade vive seu cotidiano em todos os quadrantes do planeta[22]. Não são apenas as guerras que andam se generalizando, como no Oriente e na África, ou a implosão social por meio de novos tipos de guerras civis em todos os continentes, mas até mesmo a destruição da natureza entrou numa nova fase. Conceitos como o de aquecimento global, talvez, sejam demasiado genéricos para dar conta do que anda se perdendo sem volta[23].
A dessocialização catastrófica é um deslocamento do processo outrora intencionalmente orgânico[24] das formações sociais modernas, que produziam sua unidade em torno da dinâmica imanente da identidade das personificações constitutivas destas formas sociais (capital, trabalho e terra). Como esta unidade foi implodida pela crise, seu lugar vai sendo ocupado por relações sociais sustentadas no uso direto da violência[25], que procura manter conectado o que ainda funciona da reprodução social da velha ordem agônica. Por isso, tal situação não tem como impedir a fragmentação sócio-territorial em fraturas, que expõe as falhas do que Norbet Elias chamou de “mecanismos de autocoação”. Na verdade, nestas frestas vão se disseminando revoltas privadas contra estes mecanismos. Lasch considerava estas reações, que já eram visíveis nos anos 1990, e foram características das elites pós-modernas, um sintoma do descompromisso destas elites com instituições que – como o Estado de Direito – um dia foram a base da nação e implicaram no imperativo da autolimitação dos impulsos coletivos para mantê-la viva. No Brasil, o marco do colapso deste compromisso data do curto governo de Fernando Collor. Ele foi a demarcação da personificação – e o início da maturação de uma máscara de caráter que recentemente se vestiu de amarelo e saiu às ruas – de uma constelação do capital dominada por fluxos financeiros de dinheiro sem valor. Sem ser seu oposto, a era FHC aprofundou este caráter ao mesmo tempo em que amainou seus exageros. Assim, foi se produzindo uma reação dos indivíduos que ainda estão conectados com os fluxos de dinheiro – predominantemente homens brancos – contra os perdedores locais da concorrência global – em geral mulheres, índios e negros. Na medida em que a aparente produção da riqueza deste tempo pode se desconectar do trabalho vivo, pois é um resultado do capital fictício que produz a objetivação ilusionista da transformação de dinheiro em mais dinheiro por meio quase exclusivo de mecanismos financeiros (D-D’), a existência de seres humanos supérfluos – para usarmos o termo cunhado por ARENDT (2012; 223) para designar o primeiro momento da história em que tal fenômeno apareceu- e a obrigação de um cuidado coletivo com o azar de seus destinos, seria uma ‘coação social’ contra o ‘direito’ ao livre usufruto dos triunfos que a justiça meritocrática do mercado proporciona. Além do mais, estes mesmos inutilizados sociais seriam os ‘culpados’ da enorme sobrecarga de impostos que os vencedores são obrigados a pagar e que, nem por isso, os livra de estarem expostos à violência que um estado crescente de guerra civil de novo tipo produz[26]. Os governos do PT, por seu turno, em alguns aspectos simbólicos e secundários – mas de grande efeito social – representaram um recalque momentâneo a esta reação. Por ter se iniciado num ponto em que as políticas neoliberais da década anterior haviam fracassado e produzido uma insolvência do Estado – literalmente, um estado de emergência – e em que a gestão tucana já estava completamente desmoralizada, esta irrupção da estupidez coletiva refluiu para outros caminhos, tal como pode ser visto na produção cinematográfica deste período[27]. As técnicas de gestão da barbárie desenvolvidas com o modo petista de governar a nível federal deram outro sentido aos impostos pagos – apesar desses gastos sociais serem pequenos quando comparados aos aportes de capital feitos neste mesmo período ao BNDES – e ao compromisso com políticas públicas para os miseráveis e deserdados da dissolução dos laços sociais. Por isso, quando o arranjo que deu sustentação aos governos do PT se desfez[28], estes setores irromperam do passado recente cobrando juros compostos, como se tivessem passado séculos sofrendo ‘ofensas abusivas’. Parece que agora nada mais os segura. A nova direita não é conservadora no mesmo sentido da velha direita. Esta era uma reação à dissolução das raízes agrárias das sociedades tradicionais em processo de modernização[29], enquanto a nova direita que está em cena é uma reação à dissolução catastrófica da sociedade urbana em curso desde os anos 1990. Porém, diferente da esquerda política (marxismo tradicional), sua reação não é a defesa de uma volta a algum tempo perdido do passado – mesmo quando isso aparece eventualmente em seus discursos, como no saudosismo pela ditadura militar, isto tem força marginal no argumento. Antes, ela é o desejo incontido de se livrar de alguém que, no fundo, estorva e ameaça a continuidade ou melhora do seu padrão atual de existência. Este sentimento é retirado da própria representação (fantasiosa) da reprodução social, na qual, por acaso, estes indivíduos ainda estão contidos e julgam, por alguma crença, que dela participam por um direito seu desde sempre garantido. Contudo, como a crise em curso é a dissolução da reprodução capitalista e do aparelho de Estado, o que leva “os serviços públicos desapareçam quase por completo” (KURZ: 2016, 41), assim como ao agigantamento das funções policiais do Estado, vai se formando, então, uma versão contemporânea, mais brutal e permanente da economia política da barbárie: “Em paralelo nasce uma economia de saque em que é despedaçada a substância física da economia nacional arruinada – da e na qual grupos da população, segundo critérios étnicos ou religiosos, caem uns sobre os outros numa continuação da concorrência por outros meios” (KURZ: idem, pp. 41-2).
Curiosamente, a nova direita anda mais ideologizada do que a esquerda. Seus pensamentos são fantasmagorias que cumprem a função de digerir a crise, dando um fundo de dever inexorável aos horrores que está disposta a realizar para que o curso do fim do mundo permaneça intacto. Sua identidade com a destruição é monstruosa. Este monstro é toda a luz que resta nas trevas que esta crise produziu Como o capital, ele não tem mais para onde fugir. No dia 17 de abril de 2016 ela deu uma demonstração de ser mais do que uma revolta privada: ela é uma rebelião política de massas.
Notas:
[1] Algo revelador deste caráter é a negativa recorrente de quadros dirigentes do partido ao serem perguntados se são “pessoas de esquerda”. Há o caso clássico de Lula, que numa entrevista à Revista Carta Capital (2005) disse: “Você sabe que eu nunca gostei de me rotular de esquerda. Eu sou torneiro mecânico e cheguei à Presidência da República por obra e graça da paciência…” (cf. http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da- silva/entrevistas/1o-mandato/2005/07-12-2012-entrevista-exclusiva-concedida-pelo-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-revista-carta-capital). No filme Entre Atos, de João Moreira Salles (2002), ele havia desconversado sobre sua profissão para, algum tempo depois (2007), se dizer uma metamorfose ambulante: “Eu não tenho vergonha e muito menos tenho razão para não dizer que eu mudo de posição e há muito tempo eu digo que prefiro ser considerado uma metamorfose ambulante, ou seja, mudando à medida que as coisas mudam” (cf. http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL205291-9356,00.html). Mais recentemente, uma Marta Suplicy ressentida e sentindo-se em casa no PMDB, se saiu com uma pérola do gênero: “eu nunca me coloquei como alguém de esquerda” (cf. http://www1.folha.uol.com.br/poder/eleicoes- 2016/2016/09/1814981-nunca-me-coloquei-como-alguem-que-e-de-esquerda-diz-marta-suplicy.shtml).
[2] (…) o termo ‘marxismo tradicional’ faz referência não a uma tendência histórica específica do marxismo, mas, em geral, a todos os enfoques teóricos que analisam o capitalismo desde o ponto de vista do trabalho e caracterizam esta sociedade, fundamentalmente, em termos de relações de classe, estruturadas pela propriedade privada dos meios de produção e por uma economia regulada pelo mercado. As relações de dominação são entendidas, então, principalmente, em termos de dominação de classe e exploração”. POSTONE, M. Tiempo, trabajo y dominación social – una reinterpretación de la teoria crítica de Marx. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 48.
[3] Roberto SCHWARZ (1987) foi uma das exceções a perceber o fim de linha da modernização brasileira nos anos 1980, cf. Que horas são?, em especial “O fio da meada”, pp. 71-77.
[4] Sobre este tema ver o prefácio de R. SCHWARZ (novamente!), ao livro O colapso da modernização de Robert Kurz (1992).
[5] Cf. BITTAR, J. Modo petista de governar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1992. Poucos anos depois veio a público uma nova carga de formulações coletivas sobre a cara do PT nas administrações populares, organizado por Vicente TREVAS, com o sugestivo título de Desafios do governo local: o modo petista de governar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997. Esta também é, ao que parece, a origem da inspiração para a discussão do fundo público no Brasil feita por OLIVEIRA, F. de cf. Os direitos do anti-valor – a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.
[6] Cf. MENEGAT, M. Unidos pela catástrofe: o que há de novo nos movimentos sociais da América Latina. In: DE PAULA, D.; MENDONÇA, S. R. Sociedade civil: ensaios históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, proponho neste artigo uma interpretação desta nova modalidade de revolta social, que foi a mobilização desta época do MST, distinta da leitura comum de mera luta pela terra.
[7] Cf. ARANTES, P. E. “Apagão”, in: Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004; pp. 13-24.
[8] “O iluminismo, em todas as suas variantes e graus de desenvolvimento, sempre se limitou a submeter à crítica as situações e manifestações que de algum modo se atravessavam no caminho da esmagadora roda do movimento da valorização. Por isso mesmo, a sua crítica das realidades anteriores à modernidade apenas constituía uma crítica do poder, na medida em que as formas tradicionais de dominação eram censuradas pela sua falta de eficiência e pela sua falta de capacidade de ingerência no íntimo dos indivíduos. O iluminismo foi, desde o início, o perscrutar dos pontos fracos do poder, com o intuito de fortalecer este último sob uma forma nova, objectivada que, ao mesmo tempo, seria ideologizada como forma natural inultrapassável. O início da crítica iluminista foi, por conseguinte, simultaneamente o fim de toda a crítica, o desaparecimento da crítica na forma auto-referente da subjectividade burguesa”. KURZ, R. Razão Sangrenta: 20 teses contra o chamado Iluminismo e os ‘valores ocidentais, cf. http://obeco.planetaclix.pt/rkurz103.htm
[9] O momento clássico deste antagonismo na formação social brasileira teria sido entre 1945 e 1964.
[10] Sobre a pertinência do uso deste conceito especificamente ao PT, ver RIBEIRO, P. F. “Robert Michels e a oligarquia do Partido dos Trabalhadores cf: http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/186/152). Para demonstrar sua hipótese de validade deste conceito na descrição do PT, Ribeiro analisou o ‘grau de estabilidade dos dirigentes’ do partido em diversas instâncias e, principalmente, a formação de um ‘núcleo estratégico’ na Executiva Nacional a partir de 1995. A coincidência da formação deste núcleo e a consolidação do seu pensamento programático em torno do modo petista de governar pode ser atestado na autoria do prefácio e de diversos artigos do livro Desafios do poder local (1997). Estes mesmos dirigentes/autores foram o núcleo duro dos governos de Lula da Silva, apesar de ter ficado parcialmente debilitado com as conhecidas defecções depois do escândalo do mensalão (2003-10).
[11] “Embora usemos corretamente – porque também se forma uma cultura a partir de um projeto, de um enunciado – a expressão modo petista de governar (…)”; GENRO, T. Combinar democracia direta e democracia representativa, in: TREVAS, V. Desafios do governo local: o modo petista de governar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 14 (Grifos no original).
[12] A construção do inimigo era, por exemplo, para um capitão de polícia responsável pela deportação de um grupo de judeus de Viena à Riga, tornar conhecido para todos a elaboração do “verdadeiro conceito de judeu” (cf. GILBERT; 259). Esta exigência tornaria impensável qualquer tratamento ‘humanizante’ dado a eles. O ‘objeto’ deveria render-se à ideia que temos dele. Nada mais assombroso e… kantiano!
[13] Cf. LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Lisboa: Escorpião, 1974.
[14] “As principais objeções, repetidas muitas vezes” no Congresso norte-americano contra uma imigração em massa dos judeus perseguidos na Europa “eram o medo de ‘inundar’ os já sobrecarregados orfanatos, a futura competição por empregos durante um período de elevado desemprego (…)” (GILBERT; 221-2).
[15] “As novas leis e os maiores poderes policiais aumentaram em até 50% o número de detentos de todos os tipos (…), até chegar a um ápice de 122 mil em fevereiro de 1937, comparados a meros 69 mil dez anos antes” (EVANS: 2014, 103).
[16] “O trabalho forçado de início não era uma grande prioridade, visto que se pensava que solaparia os projetos de criação de empregos do lado de fora, mas esta política em breve foi revertida, e em 1938 até 95% dos detentos estavam engajados no trabalho forçado em muitas prisões” (EVANS: 2014,101).
[17] Rusche iniciou a escrita de Punição e estrutura social nos anos 1930, para depois desaparecer num campo de concentração. Kirchheimer o concluiu no exílio nos EUA em 1938.
[18] “Dentro das prisões, as condições pioraram rapidamente sob o terceiro Reich. Os nazistas costumavam acusar o serviço carcerário de Weimar de ser mole com os criminosos, mimando os detentos com comida e entretenimento provavelmente muito melhores do que eles experimentavam no lado de fora. (…). A rápida expansão dos números logo criou mais problemas de higiene, nutrição e bem-estar geral para os prisioneiros. As cotas de alimentos diminuíram até os prisioneiros reclamarem da perda de peso e fome supliciante. Infestação por vermes e doenças de pele tornaram-se ainda mais comuns do que haviam sido nas condições longe de perfeitas de Weimar” (EVANS: 2014, 101).
[19] Cf. GILBERT: 2006, pp. 122-3.
[20] “Em 23 de fevereiro [de 1939] (…), Goering anunciou em Berlin que todos os judeus deveriam, dentro de duas semanas, entregar ‘todas as jóias e outros objetos de ouro, prata e platina, bem como diamantes, pérolas e outras pedras preciosas. (…) A desobediência acarretaria uma multa, ou a prisão com trabalho forçado por até dez anos” (GILBERT: 2005, 206).
[21] Podia-se ler numa cartilha nazista: “A ressurreição alemã (…) é um evento masculino”; (EVANS: 2014, 383). “Na primeira metade do século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e dissolver-se no caos e na barbárie – com manifestação extrema no sistema de aniquilamento de seres humanos (…)”. (KURZ: 2016, 75-6).
[22] “Algo de fundamental mudou na química da terra”, diz um grupo de cientistas que propõe modificar a nomenclatura para definir a era geológica em que estamos vivendo. “Uma maioria sólida [do grupo de 30 pesquisadores] também apoiou a proposta de definir o início do Antropoceno como a década de 1950”. http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/09/1811580-cientistas-querem-criar-oficialmente- a-era-geologica-do-homem.shtml
[23] Numa entrevista obrigatória, o reconhecido paleontólogo Altair Sales Barbosa explicou o que foi o resultado da expansão do agronegócio pelo Centro-Oeste do Brasil nos últimos 30 anos: “O cerrado está extinto e isto leva ao fim dos rios e reservatórios de água”. Cf. http://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-ao-fim-dos-rios-e-dos-reservatórios-de-agua-16970/
[24] Esta afirmação é relativa, obviamente. Caio Prado Jr. assinalou no seu Formação do Brasil Contemporâneo que no aqui não havia se formado um ‘nexo moral’ que daria aos grupos sociais justamente esta organicidade.
[25] Apenas alguns dados sobre o crescimento da função policial do Estado brasileiro deste período. Primeiro, o relativo ao grande encarceramento, por exemplo, em que o número de encarcerados do início dos anos 1990 saltou de 114 mil (http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_rw.shtml) para 622.000 em 2014 (cf http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/numero-de-presos-dobra-em-10- anos-e-passa-dos-600-mil-no-pais.html ). Outro dado: os números de homicídios que passou de 13 mil em 1980, para 56 mil em 2014. Cf. http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-07-02/brasil-bate- recorde-em-homicidios-e-fica-em-setimo-lugar-entre-100-paises.htm
[26] Sobre este conceito no Brasil ver MENEGAT, M. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
[27] O crítico de cinema Inácio Araújo diz algo interessante sobre o filme Cidade de Deus, de Fernando Meireles, e a conjuntura em que foi feito: “Estranho momento, o de Cidade de Deus (2002): o país estava saturado de um tipo de política e se preparava para eleger Lula presidente, pendendo, portanto para políticas sociais. Ao mesmo tempo, o filme anuncia o surgimento de uma nova sensibilidade. Rompe-se, a rigor com o cinema novo e com a ideia de que o banditismo é, antes de tudo, uma questão de política. Ainda não estamos na era de Tropa de Elite, mas a caminho: o jovem bandido é perverso por natureza, assim como o rapaz que aspira à função de repórter fotográfico é pessoa de boa índole.O sucesso do filme deve-se, em parte, é inegável, a uma espécie de saturação de um olhar – esse olhar sempre benevolente com o banditismo. Ele nos diz que estávamos cheios disso. Os espectadores que fizeram o sucesso desse tipo de olhar pendiam, na esfera política, para outro lado. Nem sempre somos fáceis de entender”. Cf Ilustrada, Folha de São Paulo, 3 setembro de 2016.
[28] Sobre este tema ver MENEGAT, M. O fim da gestão da barbárie. Revista Territórios Transversais – resistência urbana em movimento, nº 3, Rio de Janeiro, 2015; pp. 13-15.
[29] Conforme pode ser lido na obra clássica de HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1982.
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