Subsunção da vida ao capital

O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo à subsunção da vida no capitalismo biocognitivo

Por Andrea Fumagalli

Trecho

A sociedade de controle é a governança da subsunção da vida. Três elementos o confirmam.

1. O primeiro já foi sublinhado pelo próprio Deleuze ao escrever:

É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão –, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes. […] A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.

Nessa passagem, Deleuze se refere à construção de um sistema monetário supranacional (o Sistema Monetário Europeu [SME] do final dos anos 80), antecipando o papel e a tarefa dos mercados financeiros ao longo dos 20 anos seguintes: isto é, a violência dos mercados financeiros como instrumento ao mesmo tempo de “chantagem e consenso” para acessar recursos monetários e lidar com a dívida pública e privada. O controle dos fluxos financeiros atualmente significa controle da emissão de liquidez, formalmente executado pelos bancos centrais, mas cada vez mais dependente da lógica do poder e das convenções da oligarquia financeira.

O outro lado desse controle é a governança do comportamento individual através da “dívida”: hoje em dia, dívida não é mais apenas um termo econômico e contábil, mas uma ferramenta disciplinar indireta (e, por isso, de controle social), capaz de regular a psicologia individual e até de desenvolver um sentimento de culpa e autocontrole.

2. O segundo processo de controle social é representado pela evolução dos tipos de contrato de trabalho na direção de uma condição de precariedade estrutural, existencial e generalizada. A condição precária atualmente é sinônimo de incerteza, instabilidade, nomadismo, chantagem e subordinação psicológica a fim de sobreviver. Ela é uma condição de dependência que não se manifesta no próprio momento em que define formalmente um contrato de trabalho, mas está upstream e downstream. É uma condição existencial que induz formas totais de autocontrole e autorrepressão com resultados até mais fortes do que aqueles da disciplina direta da fábrica. A condição precária define uma antropologia e psicologia comportamental que é tão forte quanto o trabalho se torna mais cognitivo e relacional.

A dívida, por um lado, e a precariedade, do outro, são os dois principais pilares que permitem que a atual subsunção da vida do capitalismo biocognitivo opere.

Esses dois elementos principais favorecem uma individualização do comportamento econômico e social, rumo ao que Dardot e Laval chamam de “homem empreendedor”, uma espécie de antropologia neoliberal que define um novo regime subjetivo, que precisa ser enfrentado.

Para induzir comportamentos subjetivos alinhados com o processo de exploração da vida que subjaz à subsunção da vida, é necessário, entretanto, introduzir outro dispositivo de controle, visando à governança da subjetividade dos indivíduos.

3. Essa é a terceira tendência de controle social, que se move em uma pista dupla: o controle dos processos de formação do conhecimento (sistema educacional) e a criação de um imaginário individualista ad hoc. Quando o conhecimento, o intelecto geral, torna-se estratégico, a base do processo de acumulação capitalista e biovalorização, é necessário não só controlá-lo, mas também dirigi-lo. Esse processo pode ocorrer em duas direções mutuamente complementares, visando à administração das “coisas” (a primeira) e ao governo das pessoas (a segunda). Em primeiro lugar, estamos presenciando o desenvolvimento de uma tecnologia de governança (techne) como uma ferramenta que minimiza constantemente (até eliminar) qualquer elemento de análise crítica e filosofia social. A especialização técnica cria “ignorância” no sentido etimológico do termo, isto é, “não conhecimento”. Em segundo lugar, acrescentamos o dispositivo do mérito e da recompensa individual e seletiva, uma espécie de mantra estabelecido claramente nos processos de reforma das instituições educacionais (do jardim de infância à universidade). O objetivo é transformar a individualidade diferente (tornada trabalho e valor) em subjetividade individualista, perpetuamente em competição, que depois se autodesvanece.

Paralelamente, a transformação da vida em marca, em termos da comodificação total da vida, leva a assegurar que o indivíduo se transforme em singularidade única, com desejos e necessidades que visam mais “parecer” do que “ser”. O imaginário formal da aparência se torna um instrumento de identificação conformista, que é muitas vezes heterodirigida e controlada. O crescimento vigoroso das redes sociais, com toda a sua ambivalência e riqueza em potencial, testemunha e certifica esse processo.

Assim, a subsunção da vida explora a individualidade subjetiva, transforma em valor as diferenças e a diversidade (gênero, raça, educação, caráter, experiência, etc.), recombinando-as, na gaiola externa da dívida e da precariedade, em um processo contínuo e dinâmico de cooperação social induzida.

Com efeito, a governança da subsunção da vida se baseia em um uso calibrado de dois dispositivos principais: a subjugação social e escravização. A subjugação social é precisamente a produção da subjetividade apropriada pelo capital, no próprio momento em que o sujeito trabalhador está livremente envolvido no processo de valorização, já que nele ele vê ou, melhor, tem a ilusão de ver sua própria realização. “A sujeição social, como resultado de sujeitos individuais, dá-nos uma identidade, um gênero, uma profissão, uma nacionalidade. Ela constitui uma armadilha semiótica significativa e representativa da qual ninguém escapa.” No capitalismo biocognitivo, as técnicas de sujeição mobilizam formas de representação (a arte, por exemplo) e práticas discursivas, estéticas e visuais. Elas encontram realização no conceito de capital humano, capazes de assumir sua própria responsabilidade individual e, no caso de fracasso, de se sentir “culpados” e “em dívida”. A figura que melhor representa esse processo de subjugação é, ao mesmo tempo, o trabalhador autônomo e o consumidor.

A escravização, por sua vez, é primordialmente maquínica e psicológica. Os dois atributos são totalmente interdependentes, quando a máquina está dentro do cérebro individual e afeta a psique. Por um lado, ela “se refere a tecnologias que não são representativas, mas operacionais, diagramáticas, que operam usando subjetividade parcial, modular, subindividual”. Por outro lado, leva “o ser humano, da mesma maneira que a estrutura mecânica, a trabalhar como componente humano e parte da mesma máquina”. Diferentemente da sujeição social, na escravização nossa percepção, nossa psicologia, nossa consciência (falsa) não são necessárias. Não há relação entre sujeito e objeto, e sim um procedimento mecânico, que resulta de uma comunicação recíproca, íntima entre o ser humano e a máquina.

A subjugação social e a escravização são indispensáveis uma para a outra e se alimentam reciprocamente. Nas firmas do capitalismo biocognitivo, como as grandes firmas industriais ou de distribuição (como Facebook, Twitter, etc. ou de serviços de internet – Google – ou as que gerem levantamentos de dados, bancos de dados) para finalidades de marketing ou mineração de dados, os indivíduos não são considerados indivíduos apenas, mas também fonte de produção, troca, distribuição e processamento de informações.

O controle das informações e da difusão do conhecimento, a construção de imaginários simbólicos ad hoc, bem como a precariedade da vida e do trabalho, são práticas tanto de subjugação social quanto de escravização, capazes de nos fazer entender o processo de subsunção da vida no biocapitalismo cognitivo e de restabelecer o conceito de biopoder de Foucault.

O desafio, agora, é medi-lo, se possível.

Leia o artigo na íntegra: IHU – Instituto Humanitas Unisinos.

FUMAGALLI, Andrea (Università di Pavia, Itália). O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo à subsunção da vida no capitalismo biocognitivo. (Traduçã0: Luís Marcos Sander) Cadernos IHU Ideias,  ano 14, vol. 14, nº 246,  2016 (ISSN 2448-0304 [online]).

English version available at Research Gate

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