Nas relações sociais capitalistas em que todos nos encontramos metidos até o pescoço, estamos em luta constante para obter um bom diploma, para encontrar trabalho, para chegar ao fim do mês, para subir na escala social, para permanecer no curso, para obter uma boa carreira, para eliminar um concorrente, para não ser visado no emprego, para estar sempre bem relacionado, para enfrentar as “fantasmagorias” (Klaus Theweleit) da masculinidade, para desempenhar como mulher a “segunda jornada” em casa, etc. O medo do fracasso gerado por tudo isso cria um enorme clima de ansiedade e de constante tensão (que leva ao “burn-out”, ao suicídio ou ao desejo de matar todo mundo).
O indivíduo-mercadoria, para consolidar o seu estatuto de sujeito particular isolado que deve defender os seus próprios interesses no contexto da concorrência capitalista, vendendo a sua força de trabalho – e, mais ainda, enfrentando a sua impotência diante de sua própria relação com a sociedade, a qual lhe encara como um constrangimento coletivo reificado –, é tomado assim, estruturalmente, por uma necessidade subjetiva de identificação[1].
Ele transfigura tudo isso, assim como as ameaças sobre a sua própria existência, associando-se à certas identidades coletivas compensatórias (com certas ‘comunidades fictícias, imaginadas”, para usar o termo do historiador Benedict Anderson), as quais dão aos despojados de tudo um sentimento ilusório de grande poder – o qual pode ser reconhecido como o “narcisismo coletivo” do sujeito moderno (Erich Fromm). Seja por meio de comunidades imaginadas que foram geradas por toda uma história de fogo e de sangue no próprio capitalismo desde o século XVIII ou que, por vezes, foram artificialmente criadas a partir de zero pela invenção de “novas tradições” (Eric Hobsbawm): o povo, a pátria, a nação, a etnia, a “comunidade racial superior”, a religião, o Ocidente esclarecido, os grupos esportivos de cultores do corpo, a comunidade do califado, as “tribos” identificadas por Michel Maffesoli e que foram chamadas de pós-modernas (musicais, etc.), a comunidade unificada por uma “personalidade autoritária” (Adorno) ou por um “líder carismático” (Max Weber).
Desde a virada da década de 1980, a crise nos centros do capitalismo, assim como o fracasso das modernizações recuperadoras nas periferias, tudo levou a uma reestruturação radical no interior arrumável do sistema de tais identidades coletivas compensatórias e de legitimação (sistema este que não é externo ou pré-moderno, mas imanente à totalidade social capitalista). É aí que as mônadas armadas se equipam para a luta pela vida no capitalismo que veem como o melhor dos mundos possíveis.
Evocaremos aqui, em particular, algumas das formas contemporâneas deste novo surto de peste identitária que surgiu a partir dos anos 1980-90, por meio dos mais recentes arranjos identitários e religiosos.
- A ascensão do islamismo integrista em um mundo árabe economicamente desmoronado;
- O retorno nos centros capitalistas do discurso fundamentalista dos “valores ocidentais” e da justificação do “papel positivo da colonização”;
- O populismo transversal da “esquerda da esquerda”, assim como da extrema direita, que afirma tarada e idiotamente o nacionalismo e a defesa da soberania econômica (o “made in France”, o protecionismo em favor do “bom capital produtivo nacional”);
- O crescimento em toda a Europa da extrema-direita depois de 2008, o diferencialismo étnico de Alain de Benoist ou mesmo ainda o debate em França sobre a famosa “identidade nacional capitalista”;
- A aceitação da leitura culturalista como base comum tanto dos defensores do “choque de culturas” quanto do “diálogo de culturas”. Eis que muitos, de Alain Finkielkraut a Houria Boutelja do Partido dos Nativos da República[2], partilham agora as identidades coletivas, culturais-religiosas, ou mesmo convocam por meio tambores e trompetes os chamados valores universais “europeus” e “ocidentais”. Fazem-no embora estejam demonetizados pela lógica da exclusão social e racista gerada pelo sistema da concorrência capitalista com o seu jogo de
A cena é de colapso. É justamente nela surge essa nova peste identitária. Enquanto uma nova ideologia de legitimação, essa peste se encontra bem aninhada no processo de crise interna do capitalismo descrito por Norbert Trenkle e Ernst Lohoff em A grande desvalorização. Será ela um motor de agravamento do processo da crise?
Que uma vassoura varra todos os patriotas, nacionalistas, populistas, identitários, racistas e culturalistas!
Notas:
[1] N. T.: É precisamente essa necessidade de se encaixar numa identidade coletiva particularista que o autor denomina de “peste identitária”. Ela contraria em geral o universalismo que caracteriza – ou que deveria caracterizar – a posição da esquerda na questão da identidade social.
[2] N. T.: Em francês: Parti des Indigènes de la Republique.
Fonte: Bate-papo com Clément Homs (Terça-feira 28 junho, 20:30, Place du Vigan, Albi) Blog Palim-Psao – Versão em português no Blog Economia e Complexidade
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