Financeirização: Disciplina do Mercado ou Disciplina do Capital?

Por John Milios e Dimitris P. Sotiropoulos[1]:

1.  Introdução às discussões recentes: neoliberalismo, financeirização e crise.

Um aspecto crucial de quase todas as abordagens contemporâneas sobre o imperialismo é a ideia de que o domínio neoliberal e do setor financeiro globalizado sobre o sistema econômico produz uma versão predatória de capitalismo, um capitalismo que inerentemente tende para a crise.

A atual crise financeira mostra-se sem precedentes no período pós-guerra. E isto é reconhecido mesmo pela maioria dos economistas do “mainstream”. Há entre eles um crescente consenso sobre a necessidade de regulamentar certos setores da economia. Com o fim da era Regan[2], têm surgido mesmo grandes debates sobre o futuro da regulação.

Todas essas discussões são importantes, mas não contam toda a história. A instabilidade financeira e a redistribuição de renda são aspectos cruciais do capitalismo contemporâneo, mas não capturam a sua essência.

A literatura heterodoxa recente está dominada por um único e persistente argumento.[3] Este afirma que a liberalização financeira contemporânea deve ser encarada como um processo no qual as elites financeiras e os intermediários financeiros, ou seja, os rentistas contemporâneos na terminologia keynesiana, têm um papel de liderança na formulação das características da forma neoliberal de capitalismo. Escrevendo em meados dos anos 1930, Keynes previu a eventual extinção (a “eutanásia”) dos rentistas “dentro de uma ou de duas gerações” (Keynes, 1973, p. 377). Muitos dos atuais keynesianos retratam os acontecimentos das últimas décadas como um retorno, após três gerações, dos rentistas, que voltaram para assumir o comando da economia. O neoliberalismo surge, assim, como uma “vingança dos rentistas” – segundo uma frase cunhada por Smithin (1996, p. 84). Julga-se, assim, que os rentistas passaram a moldar as agendas políticas e econômicas contemporâneas de acordo com seus próprios interesses.

A literatura econômica relevante, de acordo com Epstein, cunhou o termo financeirização para designar o fenômeno da “crescente importância dos mercados financeiros, dos motivos financeiros, das instituições financeiras e das elites financeiras, na operação da economia e em seus órgãos de decisão, tanto em nível nacional quanto em nível internacional” (Epstein, 2001, p. 1). Nesse discurso quase-keynesiano, o fortalecimento econômico e político dos rentistas implica: (i) no aumento da importância econômica do setor financeiro em oposição ao setor “real” e industrial da economia; (ii) na transferência de renda do último para o primeiro, o que assim aumenta as desigualdades econômicas e deprime a demanda efetiva: (iii) na exacerbação da instabilidade financeira que se transforma, agora, numa característica central do capitalismo contemporâneo.

Não é nossa intenção fornecer aqui um relato abrangente e aprofundado da financeirização neoliberal, tal como ela é apresentada do ponto de vista keynesiano. Esse modo de análise certamente lida de maneira bem competente com aspectos cruciais do capitalismo atual, tais como os créditos estruturados, as inovações financeiras especulativas, o relaxamento da supervisão, a desregulamentação e a fragilidade financeira (Wray, 2008). Além disso, ele mostra também como a financeirização tem contribuído para a reestruturação radical e para a igualmente radical mudança no comportamento das empresas (especialmente das grandes corporações).

De acordo com análises pós-keynesianas e institucionalistas recentes,[4] as corporações industriais deixaram de ser os “motores à vapor da economia”, tal como Keynes e Schumpeter as retrataram no passado. A sua prioridade agora é servir aos interesses dos rentistas (isto é, dos principais acionistas e das instituições financeiras que os representam): operam, assim, para aumentar a remuneração dos principais acionistas, para elevar a sua influência na tomada de decisões nas empresas, em detrimento dos interesses das outras partes interessadas (isto é, dos trabalhadores, consumidores e gestores).

Segundo essa visão, duas mudanças relevantes ocorreram nas empresas.[5] Em primeiro lugar, as sociedades por ações passaram a ser concebidas como carteiras de ativos líquidos que os gerentes financeiros devem continuamente reestruturar para maximizar os seus valores, elevando os preços desses ativos (ações) em todos os pontos no tempo. Em segundo lugar – e como consequência da primeira alteração – aconteceu uma mudança fundamental (e forçada) nos incentivos dos gestores de topo que agora passaram a pensar só em termos de maximização dos preços das ações no curto prazo. Como produto final desse processo como um todo tem-se, por um lado, a implementação de políticas de negócios anti-trabalhistas e, por outro, um foco fixo nos ganhos (especulativos) de curto prazo, em detrimento de uma preocupação como o desenvolvimento econômico a longo prazo, com a estabilidade e o emprego.[6]

Assim, para a argumentação de matriz keynesiana, o neoliberalismo é uma variante “injusta” (em termos da distribuição de renda), instável e anti- desenvolvimentista de capitalismo que gera, como sua consequência direta, a contração dos rendimentos dos trabalhadores e a proliferação da especulação. É um regime que foca a atividade econômica para buscar lucros na esfera da circulação. Pondo as coisas em forma esquemática, para ela, os proprietários rentistas dos títulos financeiros induzem uma queda no “preço” do trabalho de modo a aumentar a avaliação de seus valores mobiliários (títulos e ações), o que lhes permite se engajarem, ao mesmo tempo, em especulações de modo a obter vantagens de curto prazo que advêm na competição entre os rentistas rivais.

Esta concepção geral parece prevalecer também no seio da discussão marxista. Para diversos teóricos influenciados por ela, o capitalismo neoliberal não tem sido bem- sucedido (pelo menos até agora) na restauração da rentabilidade do capital (isto é, da taxa de lucro) em níveis elevados, ou seja, em níveis satisfatórios para uma acumulação capitalista dinâmica (a questão que fica seria saber que níveis seriam estes)[7]. Assim, ele parece ter ficado prisioneiro (desde meados 1970) de uma crise perene, cujo fim não se afigura como facilmente visível. O resultado dessa situação é que grandes somas de capitais se mostram incapazes de se transformar em investimentos. E isto tem duas consequências prováveis. Em primeiro lugar, este “excedente” de capital estaciona nos mercados monetários, criando “bolhas” ou, então, é usado para apoiar políticas ineficazes de acumulação forçada que dependem de empréstimos e de dívidas (Brenner, 2001, 2008; Wolff, 2008). Em segundo lugar, este capital circula internacionalmente em busca da acumulação por espoliação (Harvey, ver Capítulo 3), lucrando não por meio da exploração do trabalho, mas por meio de apropriação direta de renda, principalmente daqueles que não são financeiramente privilegiados ou que não ocupam uma posição adequada nos mercados de crédito (Lapavitsas, 2008).

Não se tem o propósito de realizar aqui uma crítica abrangente das visões acima referidas. Elas expõem, sem dúvidas, aspectos significativos do capitalismo atual; em nossa opinião, entretanto, são incapazes de fornecer uma avaliação suficientemente abrangente das razões que nutrem as reformas neoliberais. A sua fraqueza de base – e que é, ao mesmo tempo, aquilo que as mantêm juntas – é que elas apresentam a fórmula neoliberal para garantir a rentabilidade do capital não como uma questão de produção de mais-valia, mas como uma questão de redistribuição de renda, ficando, assim, essencialmente, numa análise que se cinge à esfera da circulação. Fica parecendo, assim, que a “incapacidade” de desenvolvimento[8] e a instabilidade do capitalismo atual resultam de uma certa “insaciabilidade das finanças”, ou pelo menos da má regulação das relações que regem a repartição da renda. Seríamos todos, em última análise, keynesianos?

Antes de formular uma resposta negativa à essa última pergunta, far-se-á, de passagem, uma referência à atual crise financeira.

Leia o artigo integral (pdf) no blog de Eleutério Prado: Economia e Complexidade.

Notas do item 1:

[1] Afiliações: John Milios: Universidade Técnica Nacional de Atenas – e-mail: john.milios@gmail.com; Dimitris P. Sotiropoulos: Open University Business School, Grã-Bretanha – e-mail: dimitris.sotiropoulos@open.ac.uk.

[2]  N. T. Para entender a referência, note-se que este artigo foi publicado em 2009. Ele foi apresentado na conferência Understanding the Economic Crisis: The Contribution of Marxisant Approaches, realizada em dezembro de 2009, organizada pelo Journal of Balkan and Near Eastern Studies and the University of Piraeus. Ele está disponível na internet em inglês.

[3] Ver, por exemplo, Palley (2007), Crotty (2005), Smithin (1996), Pollin (1996), Wray (2007), Dumenil and Levy (2004), Eptein and Jayadev (2005), Helleiner (1994), O’Hara (2006).

[4] Deve-se ter em mente que as análises da corrente de pensamento pós-keynesiano (Minsky 1993; Palley 2007; Pollin 1996) estão intimamente associadas às abordagens das escolas de economia institucional (Lazonick e O’Sullivan, 2000), às teses dos seguidores da escola da regulação (Grahl e Teague, 2000) e à certas teorias da “financeirização” (Froud et. ali., 2007; Crotty, 2005; Dumenil e Levy, 2004).

[5] Ver Crotty (2005). Na mesma linha de argumentação, O’Hara afirma que: “a mudança da estrutura e da dinâmica do sistema financeiro dos EUA desde a década de 1970 aumentou o conflito entre a finança e a indústria, fazendo como que o setor real viesse a se tornar um jogador coadjuvante no jogo principal de ganhos de capital que agora ocorre no mercado de ações” (O’Hara, 2006, p. 165).

[6] Estas análises são todas mais ou menos variações sobre o mesmo tema e dentro da mesma problemática. Os acionistas e os gestores que eles contratam são conceituados como agentes econômicos coletivos com distintos comportamentos econômicos e objetivos. Os gerentes estão supostamente interessados na promoção do seu poder pessoal e em seu status por meio de uma expansão infinita do tamanho da empresa, sem se interessarem em aumentar os dividendos dos acionistas. O domínio renovado dos rentistas que veio com o ressurgimento do neoliberalismo forçou os gestores a cumprir as exigências dos acionistas. Eles foram obrigados a abandonar a política de longo prazo de “reter e reinvestir” em favor de uma prática míope de “reduzir e distribuir”.

[7] Veja-se também Campbell (2003).

[8] Deve-se notar que, ao longo do período neoliberal, apesar de ter ocorrido uma queda nas taxas de crescimento, particularmente nas economias capitalistas desenvolvidas, o crescimento permaneceu em níveis mais ou menos “satisfatórios” (Panitch e Gindin, 2003).

Demais notas no texto em pdf no blog Economia e Complexidade.

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