Por Lidia Storoni:
Era este o círculo exclusivo, composto por soberbos proprietários, os detentores dos cargos lucrativos; classe a qual, uma vez abandonada a atitude plebeia que parecia sua nos discursos contra Verres, Cícero era agora totalmente devoto (porém, com o passar dos anos ainda denunciará o hedonismo, a insensibilidade moral daqueles nobres: não pensam em outra coisa, escreverá, que em suas casas, suas quintas, suas coleções de arte… E, amargamente consciente de sua aquiescência: não são mais livres para pensar, nem mesmo odiar…).
Imbiancati con il gesso
No curso da incessante luta de classes que constitui a história da Roma Republicana, a plebe obtém gradativamente participação no governo, primeiro elegendo os magistrados e, em seguida, pela ordem, os poderes: polícia, tribunais distritais, censura, edificações, tribunato, consulado, todos os cargos anuais e todos os colegiais. A plebe poderia também dar o seu parecer, para o referendum, sobre contas do parlamento que ficavam afixadas por vários dias de modo que todos pudessem examiná-las e tendo o presentatore tempo para explicá-las. Por fim, a plebe exerceu as funções do Tribunal de Recursos, sendo sua faculdade comutar a pena de morte no exílio, caso o infrator, fazendo uso de provocatio, apelasse ao povo.
Abaixo dos grandes – os Metelli, Scipioni, Claudi –, uma maioria silenciosa exercitava o que Nicolet definiu como tarefa dos cidadãos: uma ampla base anônima de agricultores, artesãos, comerciantes, empresários, que fornecia à classe dirigente o seu consenso por meio do voto. O que acontecia em duas assembleias. Na primeira, remanescente da antiga estrutura militar, na qual os cidadãos era agrupados por riqueza e idade, os indivíduos eram divididos em unidades eleitorais chamadas centúrias (e votavam nos comícios respectivos). Na segunda, eram englobados todos os italianos, divididos em quatro tribos urbanas e trinta e uma rurais, as quais votavam nos comícios tribais, através de representantes residentes em Roma.
Contava o voto não do indivíduo, mas da tribo. Os representantes dos eleitores eram separados por cordas, colocando individualmente em uma cesta controlada por um tutor as tabuletas enceradas onde contava seu consentimento ou recusa de uma lei, sentença, ou nome de um candidato. O último trajeto era percorrido sobre uma passarela colocada de forma bem visível para que todos pudessem verificar o não recebimento de sugestões, pressões ou subornos. Os candidatos ficavam esperando do lado de fora até que o arauto proclamasse o nome do vencedor. Seus mantos eram branqueados com gesso, de modo que eram reconhecidos à distância (daí o nome candidato).
Durante as campanhas eleitorais ocorriam, claro, ataques a rivais, bajulações, promessas e, possivelmente, malgrado as proibições, dádivas aos eleitores. A analogia entre os costumes da Roma Antiga e os nossos é mais acentuada do que com episódios históricos recentes. A Editora Salerno publicou em 2006 o Manualetto di Campagna Elettorale (editado por Paolo Fedeli, € 11,20), contendo conselhos sagazes enviados pelo fratello Quinto a Cícero, quando apresentou sua candidatura ao senado em 63 a.C.
Um ano antes, 64 a.C. e talvez 65 a.C., às vésperas do memorável consulado em que, já quase no final do mandato (novembro de 63 a.C.), Cícero frustrará a conspiração de Catilina, proferindo a famosa série de 4 discursos chamados catilinárias. Foi o momento mais alto de sua carreira, incessantemente lembrado e celebrado. Custou-lhe o exílio e a destruição daquela casa ter condenado os conspiradores à morte sem apelação, mas conquistou assim uma glória que ele considerou igual ou mesmo maior que a de Pompeu: cedant arma togae (curvam-se as armas diante da toga), escreveu Cícero no único verso que nos chegou.
A apresentação deste breve Manualetto tem a assinatura de um relevante personagem de sucesso eleitoral a saber: Hon. Giulio Andreotti. No fratello de Cícero, Andreotti reconhece um agente eleitoral esperto, engenhoso, audacioso, inescrupulosamente cínico: nada diria de Cícero, que na véspera de sua queda, quando Catilina era um dos candidatos a sua sucessão derrotado em duas eleições anteriores, assumiu a defesa do outro, Lucius Murena, que arriscava ter sua candidatura impugnada sob acusação de fraude eleitoral. Crime este cuja pena o próprio Cícero havia feito agravar com uma lei que leva seu nome, Lex Tullia de ambitu [“ambitus” é a origem em Latim de ambição; a pena prevista era de 10 anos de exílio – N.T.].
Tal arenga requeria uma inescrupulosidade incomum. O editor do Manualetto, Paolo Fedeli, oferece uma excelente ilustração e esclarece o propósito. Segundo ele, por um lado, Quinto havia oferecido a Cícero um conjunto de instruções sobre táticas a serem usadas na campanha eleitoral; por outro lado, também teria fornecido aos seus apoiadores orientações para que pudessem ajudá-lo com eficácia… Para além do destinatário imediato, Quinto tem em mente um público mais amplo: os membros da aristocracia que, num momento de extremo perigo para o Estado, deviam sentir a obrigação de apoiar o único candidato capaz de oferecer garantias sólidas para a manutenção do quadro institucional e da luta pela preservação da República. Ainda que seja um homo novus, eleito Cônsul se tornaria parte da nobilitas. Era este o círculo exclusivo, composto por soberbos proprietários, os detentores dos cargos lucrativos; classe a qual, uma vez abandonada a atitude plebeia que parecia sua nos discursos contra Verres, Cícero era agora totalmente devoto (porém, com o passar dos anos ainda denunciará o hedonismo, a insensibilidade moral daqueles nobres: não pensam em outra coisa, escreverá, que em suas casas, suas quintas, suas coleções de arte… E, amargamente consciente de sua aquiescência: não são mais livres para pensar, nem mesmo odiar…).
Segundo Paolo Fedeli, portanto, mais do que ao candidato, sua obra é dirigida aos seus partidários influentes; e, na apresentação do ponto de vista dos estudiosos que questionam a autenticidade e a avaliam um ou mais séculos depois, alinha-se ao julgamento daqueles que acreditam efetivamente no que parece: uma série de dicas úteis para o candidato daqueles tempos, aliás, como os de todos os tempos: ser sempre acessível, afável, generoso, abundante nas promessas, disposto a atender pessoas não sonhariam ter um particular privado (mas o candidato, resulta claro, é uma espécie humana diferente do homem comum); evitando, entretanto, todos aqueles que não sirvam ao fim supremo, ser eleito. Razões muito válidas de ambos os lados, com base em extensa análise histórica e filológica, que que derivam os argumentos a favor e contra a autenticidade da escrita.
Bom, raciocinamos a partir do profano, simplesmente com o senso comum: de que é plausível que um irmão se faça zeloso conselheiro de um candidato. Mas qual a necessidade de publicar conselhos pessoais? Isso sugere manter um olho em determinados ambientes e não se comprometer em outros, não ficar amarrado com programas muito pormenorizados, cercar-se de pessoas que o acompanhem aos fóruns e se amontoam na sua própria casa, sempre aberta, mesmo no coração da noite; que o desejo de viajar aos estados e conversar com todo mundo, recordando a alguns uma dívida de gratidão que tenham com ele, a outros prometendo futuros favores, tudo bem, é possível. Mas não há garantia de que todas essas manobras sejam benéficas para a sua causa. Menos ainda que sirvam para convencer os nobres de que Cícero, somente ele, saberá salvá-los, na iminência do golpe (que na verdade Catilina, quando pressionado, irá tentar apenas um ano e meio mais tarde). Que o Cônsul estabelecido seja providencial, só após a coisa feita se verá, não de antemão. E o golpe de Estado, ocorrido um ano ou dois antes, não era previsível antecipadamente.
Além disso, Cícero realmente precisava ser guiado? Fora sua notável disponibilidade, não há candidato que não esteja preparado, mesmo hoje, a longos meses de trabalho exaustivo: causar boa impressão a pessoas de todos os matizes, apertar milhares de mãos, beijar centenas de crianças, engolir incontáveis cafés e aperitivos, comparecer a inaugurações, funerais e batizados, testemunhar casamentos, prometer cargos, escrever recomendações que sabe perfeitamente inúteis, aumentar, enfim, o número de memórias de ex-colegas de escola: classe que, a julgar pelos seus números, devia ter sido composta por dois mil alunos.
Fontes: La Repubblica (1988) e Francosenia (2015)
Versão em português de Sérgio (Maccari) Baierle
Lidia Storoni foi escritora, jornalista e historiadora italiana (30/01/1911 – 11/09/2006).
Comments are closed.