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Nem os baixos salários vos salvam!

A ilusão do Capitalismo da miséria e das prestações de serviços

Por Norbert Trenkle: “Tal como o Neoliberalismo concebe um retorno à ‘normalidade capitalista’ através de privatizações, desregulamentação e salários baixos, também a esquerda concebe, precisamente no terreno desta mesma ‘normalidade’, poder voltar às gloriosas lutas pela regulamentação, pela intervenção Keynesiana do Estado de Bem Estar e pela melhoria dos salários. Recomeçar tudo do princípio – era tudo tão bom, não era?”

Desde que a crise da sociedade do trabalho surgiu lentamente na consciência coletiva (aproximadamente desde os finais dos anos setenta), o Neoliberalismo sustentou teimosamente o ponto de vista de que tal crise de maneira alguma existe. O que aconteceria é que simplesmente a força de trabalho seria “demasiado cara”. Fosse ela mais barata e fosse oferecida de modo mais “flexível”, poderiam ser criados suficientes postos de trabalho em todo o mundo e por toda a eternidade. Este ponto de vista é hoje generalizadamente aceite como senso comum. “Numa sociedade com divisão do trabalho as pessoas têm de ganhar os seus meios de subsistência no mercado. E aí o preço é fixado pela oferta e pela procura. Se a mercadoria não se vende, é porque o preço não é ajustado. O desemprego não significa que o trabalho desapareça, mas que ele se tornou demasiado caro” escreve o jornalista econômico Nikolaus Piper (Süddeutsche Zeitung, 6.8.1998), que aqui é apenas um exemplo de todos os outros.

Após dois decênios de práxis neoliberal os ideólogos do trabalho e do mercado veem confirmada a sua mundividência simplista. Pois a verdade é que onde a “desregulamentação” do mercado de trabalho foi consequentemente prosseguida, especialmente nos Estados Unidos, foram alegadamente atingidos êxitos gigantescos, como também observa Piper: “Nos Estados Unidos, no último quarto de século, foram não só criados 45 milhões de novos postos de trabalho, como a jornada de trabalho subiu ao mesmo tempo em média 0,1%; a percentagem das pessoas empregadas subiu 0,5% e o rendimento per capita cresceu 1,6% por ano”. Que este glorioso “milagre do emprego”, apesar dos sempre repetidos alindamentos a que é sujeito, tenha consistido esmagadoramente em empregos flexíveis (“flexi-jobs”) mal pagos e inseguros, e que o trabalhador tenha de acumular dois ou três destes empregos para conseguir um rendimento apenas aceitável, é coisa a que o credo neoliberal não dá naturalmente qualquer importância.

Mas também empiricamente as coisas não foram feitas com mais rigor, pois os “êxitos do emprego” são habitualmente manipulados nas estatísticas. Mesmo com uma leitura superficial, o “balanço do emprego” não parece tão positivo como afirmado.

Quer se trate de empregos baratos ou não, quer sejam muitos, ou talvez não tantos – oficialmente considera-se demonstrada a tese de que o desemprego é apenas o resultado de custos laborais mais elevados e de condições de trabalho inflexíveis. O desemprego estatisticamente elevado nos países da União Europeia é, segundo a doutrina econômica dominante, apenas uma prova de que aqui ainda não se procedeu a uma desregulamentação adequada – argumento que o recém eleito governo social-democrata aproveita para recuperar o atraso o mais rapidamente possível. E se os Länder do colapsado Capitalismo de Estado, depois de dez anos de felicidade do Capitalismo concorrencial, mergulham cada vez mais na agonia socioeconômica, a culpa só pode ser da lentidão e da timidez das dolorosas reformas da “economia de mercado”, que simplesmente não teriam ainda sido consequentemente implementadas. Sobre a economia completamente destruída da Ucrânia diz-se com uma rara mistura de sinceridade e de cinismo: “antes de uma eventual recuperação são necessárias duas reformas: têm de ser encerradas mais fábricas de uso intensivo de energia, a energia elétrica e o gás têm de encarecer para a população; o desemprego aumentará se as empresas com futuro – por exemplo na indústria do armamento (sic) – forem finalmente reestruturadas; além disso, os burocratas têm de ser despedidos para que a iniciativa empresarial possa desenvolver-se (Die Zeit, 23.04.1998).

Apesar de argumentações deste jaez, é manifesto que a alegada recuperação econômica nas regiões em colapso do Sul e do Leste nunca ocorrerá e que as consolações com um futuro radioso, mesmo que no presente o cinto esteja cada vez mais apertado, não são especialmente credíveis a prazo. Por isso implantou-se, desde finais dos anos 80, um novo paradigma ideológico no discurso justificador do Neoliberalismo: o “setor informal” foi descoberto e declarado o reservatório de um novo empresariado dinâmico e especialmente livre que devido à “sobre-regulação” do setor formal não encontrava oportunidades de desenvolvimento e assim foi obrigado a refugiar-se na “informalidade”. Passou-se assim a fomentar este “setor de baixo” (título alemão de um livro muito discutido do peruano Herman de Soto), pois ele seria o ponto de partida e o fundamento de um desenvolvimento econômico bem sucedido no futuro (V. a exposição resumida de Komlosy e outros, 1997, p. 16 e segs). Desta forma são mortos dois coelhos de uma cajadada. Por um lado pretende-se legitimar assim a eliminação dos últimos mecanismos de proteção e de regulamentação e, por outro, apresentar a crescente deterioração das condições de vida das massas como prova da superioridade da economia de mercado.

Que uma argumentação tão grosseira possa desempenhar um papel importante no debate econômico oficial só se pode explicar naturalmente com a brutalidade dos interesses envolvidos. Pois, de um ponto de vista teórico, a afirmação de que o sistema Capitalista baseado na sociedade do trabalho possa continuar com sucesso com base em engraxadores de sapatos, vendedores de pastilhas elásticas e montanhas de lixo é muito menos que indiscutível. E é ainda mais penoso que esta brutal teoria Neoliberal inventada a martelo tenha penetrado em largos setores da esquerda – embora utilizada de forma negativa e com o ar de uma crítica particularmente sólida ao Capitalismo. A crise da sociedade do trabalho, diz-se também crescentemente nos círculos radicais de esquerda, não teria, na realidade, caráter fundamental e não poderia levar ao colapso definitivo do sistema de produção de mercadorias; quando muito, tratar-se-ia apenas do fim de uma determinada época do Capitalismo: a da prosperidade do pós-Guerra. A seguir, o Capitalismo volta finalmente à sua normalidade, de que faz parte agora que a maior parte da população se deve pôr à venda em condições miseráveis e, na melhor das hipóteses, tem de sobreviver em condições péssimas – se é que não se vai deixar morrer à fome. O capital poderia, nestas condições, ser acumulado como nunca.

O teórico da regulamentação de esquerda Joachim Hirsch formulou esta opinião que espelha a posição Neoliberal com inexcedível clareza: “O Capitalismo caracteriza-se pela permanente alteração das condições de produção e de trabalho e pela criação (cíclica) de um exército industrial de reserva. A insegurança dos postos de trabalho e o desemprego são características estruturais deste sistema econômico. Que isto seja frequentemente esquecido resulta do facto de que durante o Capitalismo fordista do pós-Guerra estas contradições terem parecido ultrapassadas. A crise da “sociedade do trabalho” é parte da crise desta formação. O que realmente acabou foi uma forma histórica específica do Capitalismo: o “Fordismo”, que se organizou depois da crise econômica mundial dos anos trinta sob as condições especiais do conflito Leste-Oeste e da Guerra Fria” (Hirsch, 1999, p. 15).

Esta crise do “Fordismo” ter-se-ia tornado claramente irreversível sob a ação da globalização através dos métodos Neoliberais do “Oeste selvagem”, da progressiva flexibilização e desregulamentação dos mercados: “com a divisão dos assalariados e com a possibilidade de jogar fortemente os seus segmentos nacionais uns contra os outros, o capital atingiu não apenas uma modificação estrutural das relações de rendimento a seu favor, mas criou também as condições para uma racionalização abrangente e, por isso, também desta perspectiva, de um crescimento sustentado do seu lucro” (ibid. p. 15 e segs)

Esta opinião é de alguma forma espantosa. Aparentemente, Hirsh deixou de pensar o sistema de produção Capitalista como um sistema global, senão ter-se-ia apercebido de que as suas teorias da acumulação e da crise têm pés de barro. Tal como a teoria econômica Liberal, Hirsh apreende o plano macroeconômico do Capitalismo Global a partir do plano microeconômico da pequena empresa. Que existam contradições fundamentais entre estes dois planos não lhe ocorreu de modo algum. Uma empresa pode aumentar o seu lucro através da diminuição dos salários e de outras condições de trabalho, da diminuição dos seus impostos e descontos para o Estado, da deslocalização de partes da empresa para “localizações baratas” e (ou em alternativa a isto), através da aplicação de novas tecnologias, racionalizando os processos empresariais e substituindo postos de trabalho por capital técnico. Visto do ponto de vista da economia global isto não significa um contributo para a resolução da crise do Capitalismo, mas, pelo contrário, o seu agravamento. Isso é visível, desde logo, nos mercados de bens de consumo em contração. Pois, quando os rendimentos de trabalho e as receitas estatais diminuem, isso significa também (mantendo-se as demais circunstâncias) a retração da procura. Quando as mercadorias não são vendidas também o capital não pode ser valorizado. Empresas individuais ou economias localizadas podem subtrair-se a este dilema na medida em que consigam levar os seus concorrentes à falência e conquistar as suas quotas de mercado. Mas nem por isso conseguem evitar que os mercados, no seu conjunto, fiquem cada vez mais restritos e surjam sempre novas sobrecapacidades nos setores centrais da produção mundial, como se verifica desde há anos. Mas não se trata simplesmente de um problema de falta de poder de compra nos mercados (no plano da circulação), como é afirmado na perspectiva Keynesiana, mas de um problema de falta de poder de compra resultante de um dilema muito mais profundo: o derreter da substância do trabalho e, com isso, da base da valorização do capital no decurso da terceira revolução industrial (a da microeletrônica). O verdadeiro poder de compra não provém do facto de se imprimir moeda e de a colocar em circulação, mas de serem conseguidos “rendimentos de trabalho” que resultem da utilização empresarial da força de trabalho. Têm portanto de surgir novos setores de produção que criem suficientes postos de trabalho suplementares ao nível das condições técnicas e organizacionais de produção vigentes no plano mundial para que possam ser compensados os poderosos efeitos da racionalização econômica empresarial resultantes da microeletrônica. No plano do mercado dos bens de consumo, os lucros em alta haveriam de manifestar-se numa procura alargada de bens de investimento, enquanto surgiriam simultaneamente novos rendimentos de trabalho que poderiam ter expressão ao nível da procura dos bens de consumo.

Mas precisamente foram estes efeitos que os métodos Neoliberais não conseguiram produzir. Pois no estádio agora alcançado pelas forças de produção através da incorporação das descobertas científicas, o mecanismo que permitiu a ultrapassagem das crises do Capitalismo até hoje já não surte efeito. Surgem na realidade novos setores econômicos, como as tecnologias da informação, em sentido amplo, mas não criam postos de trabalho em quantidade suficiente para absorver os postos de trabalho tornados supérfluos nos outros setores, pois desde o início estes novos setores produzem através da racionalidade da microeletrônica. Por isso, o Neoliberalismo não se apresenta como uma “saída capitalista da crise”, ao contrário do que afirma Hirsch (ibid., p. 15), mas pode antes considerar-se, política e economicamente, a sua forma obsoleta. A desregulamentação e progressiva dissolução dos espaços funcionalmente coerentes das Economias Nacionais levaram, na realidade, ao surgimento de setores largamente especializados de trabalho assalariado precário e de trabalho para-assalariado bem como de outras formas de trabalho miserável. Parece correto afirmar-se que nunca como hoje tanta gente, no mundo inteiro, teve de exercer uma atividade sob a forma assalariada; mas nem por isso foi eliminada do mundo a crise da sociedade do trabalho e da acumulação do capital.

Aqui, um facto de ordem sociológica (a pobreza) é, sem qualquer fundamento, colocado em curto-circuito com uma função econômica (a acumulação de capital), assim como determinadas medidas políticas (desregulamentação, privatizações, etc.) são consideradas de per si como fatores da valorização forçada do capital e a ela subordinadas. Até sociólogos e politólogos de esquerda são alheios ao facto de a economia da sociedade do trabalho capitalista prosseguir uma lógica autônoma que não cede a fenômenos sociais ou a formas de regulação política. A lógica objetiva da valorização do capital não depende de as pessoas se matarem a trabalhar e gastarem a sua energia vital; apenas importa quanto “valor” econômico é produzido com isso. O valor de determinada mercadoria não se mede no entanto pelo tempo que determinada pessoa ou empresa gastaram a produzi-la; o seu padrão é antes o tempo de trabalho necessário para a produção desta mercadoria no nível mais elevado (e historicamente sempre crescente) das condições de produção econômica empresarial vigentes.

Se, por exemplo, uma fábrica têxtil dispondo de processos de gestão microeletrônicos e de tecnologia laser produzir algumas centenas de camisas numa hora, então é este o “standard” com o qual terá de se medir a costureira que trabalha num pátio das traseiras de uma favela de um qualquer país da América Latina. Se ela precisa de duas ou três horas para uma camisa, então o seu trabalho pura e simplesmente não tem muito “valor”. Para a costureira isto traduz-se de forma sensível no facto de ela só conseguir pela sua camisa, que por exemplo fornece a um grupo têxtil internacional, um preço mínimo que não ultrapassa os custos de produção na fábrica têxtil correspondente (com a qual ela tem de entrar em concorrência direta no mercado mundial), e que mal lhe chegará para sobreviver em condições miseráveis.

Se, na realidade, vários milhões de pessoas trabalham em condições idênticas às desta costureira isso deve-se a dois tipos de razões. Do ponto de vista das transnacionais que operam no mercado mundial e das suas múltiplas empresas fornecedoras subordinadas é completamente indiferente de que forma são minimizados os seus custos e aumentados os seus lucros. Produção high tech ou trabalho barato low-tech são para elas pura e simplesmente opções que, de acordo com o cálculo dos investimentos necessários, situação do mercado, risco, situação da concorrência e demais condições estruturais, se podem utilizar e até combinar. Do ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras da miséria, é a pura coação das suas condições de vida que os obriga a vender a sua força de trabalho nas condições mais cruéis e desumanas. Visto que as condições materiais, sociais e culturais para a existência de uma economia rural de subsistência foram destruídas na maior parte do mundo (e em especial nas aglomerações urbanas gigantescas com os seus extensos bairros de lata), como pressuposto da introdução do sistema Capitalista de produção de mercadorias, a estas populações nada mais resta do que vender-se, literalmente, por qualquer preço. Os trabalhadores foram assim tornados à força em indivíduos do mercado. Porém a possibilidade de, nesta forma, poderem ter uma vida nalguma medida aceitável é-lhes negada e, assim, os miseráveis salários têm de ser complementados com diversas formas de trabalho autônomo, com auto ajuda e ajuda à vizinhança, com produções de subsistência individual (onde elas ainda forem possíveis), com trabalho informal, pequena criminalidade, prostituição, contrabando, etc.

Isto é um resultado do Capitalismo mas não, em si mesmo, um fator de acumulação de capital. A uma observação sociológica superficial, as diversas formas de trabalho miserável poderiam parecer o renascimento das relações sociais próprias do início do Capitalismo, em que os Homens voltavam de novo a ter de sobreviver em condições precárias. Mas este ponto de vista, assumido em muitos estudos sobre o setor da economia informal (Cfr. Komlosy e outros, 1977), ignora uma diferença essencial. O trabalho de massas no início do Capitalismo nas indústrias artesanais e nas fábricas, que frequentemente era complementado com atividades de subsistência, era a expressão de uma produtividade capitalista ainda muito pouco desenvolvida. Isto significava que o valor das mercadorias produzidas apenas ultrapassava em pequena parte o valor pago aos trabalhadores e trabalhadoras sob a forma de salário. A mais-valia, em comparação com as horas de trabalho utilizadas, era relativamente pequena. O capital (na forma do proprietário da fábrica ou do comerciante) compensou esta pequena margem obrigando ao alongamento do horário de trabalho ao mesmo tempo que reduzia as condições de subsistência das camadas proletárias a um mínimo absoluto: buracos bolorentos, escuros e superlotados bem como uma ração diária de batatas eram o paradigma onde quer que o “progresso da civilização” moderna se fizesse sentir. Só assim se conseguia espremer uma “mais-valia” que garantia uma suficiente valorização do capital. Marx chamou a este período o da “produção absoluta de mais-valia”.

Desde meados do séc. XIX este extremo empobrecimento foi progressivamente substituído por uma outra forma mais intensiva de exploração da força de trabalho. Na mesma medida em que a produtividade técnica e organizativa era aumentada de forma eficaz, o trabalho foi também progressivamente eliminado, tornando-se simultaneamente, no sentido da economia empresarial, cada vez mais produtivo. Isto foi, em primeira linha, vantajoso para a valorização do capital, através de uma correspondente expansão da produção; mas ao mesmo tempo foi o pressuposto econômico para que, no decurso de violentas lutas sociais e políticas, os horários de trabalho pudessem ser encurtados e o nível de vida da maioria da população, pelo menos nos países do centro do Capitalismo, pudesse ser significativamente melhorado. Hoje, pelo contrário, a situação, é radicalmente diferente da existente no início da Revolução Industrial: porque a produtividade econômica empresarial assente nas condições técnico-científicas decorrentes da microeletrônica se tornou tão gigantesca, a exploração extensiva e em massa de trabalho precário barato não é de modo nenhum a base de uma nova acumulação mundial de capital. Ela é antes a forma como o trabalho, e com ele o capital, são “desvalorizados”.

Na verdade, o trabalho tem agora, em dois sentidos, cada vez menos “valor”. Não apenas o preço da mercadoria trabalho voltou outra vez a ser pressionado no sentido do mínimo de existência, como também os rendimentos ainda possíveis das mercadorias produzidas caem cada vez mais fundo abaixo de um nível que permite a acumulação de capital. Dado que o “standard” da criação de valor é determinado pelo “standard” da produtividade, de pouca utilidade são para o capital as muitas horas de trabalho baratas, até porque, de um ponto de vista econômico elas não “valem” mais do que os poucos minutos, ou até segundos, de tempo de trabalho da produção high-tech. E esta é uma diferença decisiva relativamente à história, até à atualidade, da sociedade de trabalho Capitalista.

Bem podem agora os salários descer e os horários de trabalho aumentar – a possibilidade de acumulação de quantidades de trabalho que possam converter-se em valor nunca mais surgirá como no Capitalismo inicial. E menos ainda pode a produção de mercadorias ser alargada de tal modo que, nas condições da microeletrônica, se atinja o efeito da indústria “fordista”. Para isso seria necessário encher literalmente os oceanos de PC’s, jogos, telemóveis e Nintendo.

Assim como a produção de “mais-valia absoluta” marcou o início brutal do modo de produção capitalista nos finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX, o trabalho precarizado das massas marca o rápido declínio deste modo de produção. E se o grau de desenvolvimento das forças de produção fordistas gerou as condições econômicas necessárias, quer para a totalização do Capitalismo como sistema, quer para o relativo êxito do movimento operário, também o grau de elevação da produtividade através da microeletrônica tira o tapete debaixo dos pés à acumulação de capital e aos interesses a ela imanentes do trabalho assalariado.

Do ponto de vista do capital, a nova miséria das massas já não é produtiva. Aliás, não existe mesmo uma “normalidade” permanente do Capitalismo, que apenas tivesse sido interrompida, transitoriamente, pela prosperidade do “Welfare State”; o que existe é um processo de desenvolvimento histórico do Capitalismo, em que nenhum dos estádios anteriores pode repetir-se. Se o trabalho barato, nos setores formais ou mesmo informais da economia, contribui, direta ou indiretamente, para a formação do valor do capital, não se trata já de um fator decisivo, mas de um efeito de “transporte” secundário e mínimo da crise capitalista sobre o próprio capital, sem que com isso seja possível ultrapassar a própria crise. Mas, para a grande (e crescente) maioria, o fenômeno social da nova pobreza não consiste na sobre-exploração maciça (como no Capitalismo inicial), mas antes no facto de as pessoas se terem tornado maciçamente supérfluas, não podendo ser já absorvidas no processo produtivo do capital, ou podendo-o ser apenas provisoriamente e à margem do sistema. Isto é apenas mais uma prova de que a acumulação do capital atingiu o seu limite histórico.

Do que se trata não é de um empobrecimento em e através do trabalho, mas fora do trabalho, porque a própria sociedade do trabalho foi conduzida ao absurdo, continuando as suas formas econômicas, apesar de tudo, a dominar a sociedade. Em lugar de trabalho utilizado economicamente nas empresas aparecem as “atividades de miséria” dos excluídos. Em lugar do cultivo de subsistência de hortaliças, na terra queimada da economia de mercado o contrabando, a prostituição infantil ou auxílio de vizinhança na construção de latrinas ou de esgotos nos bairros de lata passaram a integrar a “substância de valor” na acumulação do capital. A forma monetária não é assim, na maior parte destes casos, introduzida diretamente na circulação do capital, mas apenas surge em círculos de segunda ou terceira ordem deles dependentes, como quando um trabalhador precário contrata uma prestação de bairro da lata ou um turista sexual aluga uma criança. O mesmo se aplica a uma grande parte do setor informal em expansão no centro do Capitalismo: as atividades ambulantes; as formas do “trabalho social”, as burlas, a pequena criminalidade, o trabalho forçado para as comunidades locais, e assim por diante. Se um desempregado ou beneficiário de assistência social de um Estado Social em demolição fosse obrigado a ir vender isqueiros para a rua, o erário público ficaria de facto aliviado (o que é na verdade o objetivo de tais “medidas”), mas a acumulação de capital beneficiaria com isso tanto como com o roubo de uma mala de mão.

Coloca-se por isso a questão se a tese da esquerda da superação capitalista da crise, da ininterrupta continuação da sociedade do trabalho e do alegado retorno à (negativa) “normalidade” não é afinal tão brutalmente “interessada” como a mesma tese do Neoliberalismo, com o sinal (positivo) contrário. Manifestamente, a esquerda tem medo de encarar nos olhos, tal como os representantes das instituições do Capitalismo, o facto de que a categoria central do sistema moderno de produção de mercadorias, o “trabalho” abstrato, está em rápida queda – e com ele também a possibilidade de movimentos de reforma imanentes ao sistema. Joachim Hirsh não consegue avançar num único argumento económico (no plano da teoria da acumulação do capital) para apoiar a sua tese, mas apenas argumentos de caráter “sociológico” e “politológico”. A análise não se situa ao nível do contexto do trabalho abstrato, da forma do valor e da acumulação do capital, mas antes cegamente os pressupõe. Tal como o Neoliberalismo concebe um retorno à “normalidade capitalista” através de privatizações, desregulamentação e salários baixos, também a esquerda concebe, precisamente no terreno desta mesma “normalidade”, poder voltar às gloriosas lutas pela regulamentação, pela intervenção Keynesiana do Estado de Bem Estar e pela melhoria dos salários. Recomeçar tudo do princípio – era tudo tão bom, não era?

Uma saída imanente do círculo infernal da desvalorização do capital e de empobrecimento das massas já não é possível, porque o fosso entre a produção “High Tech” e a economia de sobrevivência se torna cada vez maior e nunca mais poderá ser vencido por qualquer “estratégia de desenvolvimento”. É também esta a razão pela qual o trabalho precário necessariamente se fixou maioritariamente no setor informal da economia e aí vai permanecer. A informalidade é uma zona cinzenta entre produção capitalista marginal e barata e as atividades de miséria dos excluídos, e por isso também uma atividade econômica à margem da regulação do Estado ou de outras instituições (proteção do trabalho, contratação coletiva, encargos ambientais, segurança social, etc), razão porque, por um lado, desaparece a proteção e, por outro, deixa praticamente de ser pago qualquer imposto. A prazo isto significa naturalmente que o Estado cada vez mais abandona as suas funções tradicionais de garante de uma sociedade geral, com isso desaparecendo completamente o quadro político indispensável para o funcionamento de uma economia de mercado. Até a polícia entrega a sua “função de segurança” a determinados bandos (com os quais não é raro estar intimamente ligada), os sistemas de educação, de saúde, de segurança social entram cada vez mais em colapso, bem como as infraestruturas materiais. Assim se acelera a espiral de desvalorização e, finalmente, perdem-se até as condições para uma participação no mercado mesmo extremamente improdutiva (como mercados, as regiões em colapso do Sul e do Leste deixaram há muito de desempenhar qualquer papel digno de referência).

É claro que, neste domínio, na atual fase do processo da crise, as fronteiras podem ser fluídas. Também podem existir no setor informal empresas e pessoas bem remuneradas que provavelmente conseguiriam fazer face aos custos da economia formal; mas para a grande maioria isto não é assim; nesse setor não é gerado o suficiente valor para poder ser partilhado com o Estado ou outras instituições. A informalização da economia, que resulta necessariamente do processo de evaporação da substancia do trabalho e do valor, não poderá parar este processo. Enquanto o Capitalismo colocar como condição geral de reprodução da sociedade a exploração do trabalho abstrato, o aumento poderoso da produtividade pela microeletrônica, que poderia possibilitar a todos uma vida fácil e boa, só pode conduzir a novas catástrofes sociais.

No quadro deste processo de crise formam-se fenômenos socioeconômicos paradoxais. Por um lado, a maior parte da população mundial, que já se encontra degradada em indivíduos do mercado, é para esse mesmo mercado inteiramente supérflua. Mas, por outro lado, esta situação dúbia da consciência social, causada pelo mercado e pelo dinheiro, é ainda reforçada e alargada. Em muitos países do “Terceiro Mundo” em que a sociedade das mercadorias e do trabalho até aos anos 70 ainda não tinha conseguido implantar-se verdadeiramente (pelo menos mental e culturalmente), foi precisamente a crise da “sociedade do trabalho” que deu um forte impulso no sentido da formação de uma sociedade de mercado.

Não foi infelizmente por puro desejo ideológico que os Neoliberais pretendem ter descoberto os pequenos empresários no setor informal. Precisamente a força de trabalho não vendável converte-se numa espécie de empresariado de miséria nos nichos e nos setores secundários da circulação do capital (pense-se na gigantesca massa de vendedores ambulantes “autônomos”). Não foram apenas os modos de existência material e social, mas também as mentalidades que mudaram de acordo com este modelo, mesmo na forma puramente negativa de luta pela sobrevivência.

Apesar de todas as expressões de solidariedade de vizinhança e de trabalho familiar (sobretudo feminino), sem as quais a sobrevivência no setor informal seria impossível, este tipo de trabalho não constitui uma formação econômico-social autônoma nem um contramodelo da economia de mercado, pelo contrário, apresenta-se como a sua fase terminal, em que esta, no final do seu percurso histórico, ainda se apresenta de modo particularmente repugnante. A concorrência universal de indivíduos do mercado não é de modo nenhum suprimida, mas é reproduzida, ao nível da miséria, de forma ainda agravada. Na verdade, a prosperidade ou ruína do setor informal, na sua miséria, depende de o seu acesso aos fluxos transnacionais de mercadorias e de dinheiro não ser totalmente interrompido, mesmo que a sua quota nestes fluxos, medida no conjunto do produto social mundial, apenas tenha uma expressão insignificante. Se esta ligação for cortada, porque desaparecem até as condições mínimas de participação no mercado mundial ou porque a superestrutura financeira do país entra em colapso (ou as duas coisas ao mesmo tempo), o caminho a percorrer, e que já está de antemão traçado, é no sentido de uma economia de guerra e de saque dominada por bandos, à semelhança das que assolam extensas regiões do mundo.

Nos centros do Ocidente, as relações de vida e de trabalho precarizadas e informais, que também aqui crescem dramaticamente, entrelaçam-se com o segmento inferior daquilo a que o discurso das ciências sociais, tão imprecisamente quanto eufemisticamente, chama a “sociedade de prestação de serviços”. Este discurso, que teve o seu início na década de sessenta, pretende sugerir que a crise do trabalho poderia ser resolvida através de uma transferência decisiva do setor da produção para o setor dos serviços. Superficialmente, de um ponto de vista sociológico, os desenvolvimentos das últimas décadas parecem confirmar esta tese. Em todos os países Ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça, desde meados dos anos 70, o “setor terciário” ganhou um enorme peso absoluto e relativo. Em parte trata-se de uma distorção estatística que surge devido ao facto de, por exemplo, muitas funções como limpeza de edifícios, contabilidade, transportes ou EDV não serem já desenvolvidas no interior das empresas, mas por recurso a empresas externas de “prestação de serviços” (Outsourcing) ou de a mão de obra ser “alugada” por empresas de trabalho temporário. Em nenhum destes casos surge um novo setor de reprodução do capital autônomo da indústria, mais não se tratando do que de atividades ligadas à indústria mas apresentadas em novos moldes. Se não se tiver isto em conta, surge uma tendência estatística de deslocação para o “setor terciário”.

Mas precisamente como no caso dos baixos salários, cuja expansão se cruza com a “terciarização”, coloca-se aqui também a questão de saber se a expulsão da força de trabalho para fora dos setores industriais nucleares da produção mundial através do crescimento do setor das prestações de serviços pode ser realmente, do ponto de vista da acumulação de capital, compensadora ou até vantajosa. Uma teorização apressada com base na observação empírica parece demonstrá-lo. E isto apenas porque os novos empregos surgidos ou o volume do tempo de trabalho são simplesmente somados, sem questionar em que relação se encontram estes números com o processo social de valorização do capital no seu todo. Como já foi demonstrado para a produção industrial, a simples expansão do tempo de trabalho (e admitindo que ela seja um facto empírico) não significa que a produção de valor aumente automaticamente. O problema nas prestações de serviços é diferente do da costureira do pátio das traseiras. O trabalho desta é na realidade diretamente produtivo, embora represente um quantum de valor muito pequeno porque, se comparado com a fábrica têxtil altamente mecanizada, é extremamente improdutivo. As outras prestações de serviço, pelo contrário, pela posição que têm e pela função que desempenham no contexto econômico geral, não produzem, por princípio e por estrutura, qualquer valor, mesmo que com elas seja despendido tempo de trabalho. Elas servem ou para garantir as condições gerais de funcionamento e os pressupostos da produção de mercadorias ou são seus meros acessórios e, como tal, ficam sujeitas ao processo de desvalorização, pois não podem sustentar-se por si próprias.

Isto aplica-se primeiramente e de modo especial à infraestrutura social geral no sentido mais amplo do termo: ou seja, aos sistemas de transportes, de comunicações, de educação, de segurança social e de saúde, de Justiça e de investigação científica, à Polícia, às Forças Armadas, etc. Não é por acaso que todas estas funções são em grande parte assumidas diretamente pelo Estado ou financiadas por ele, pois embora sejam indispensáveis para o contexto geral do Capitalismo, não podem ou só muito limitadamente podem ser organizadas de forma empresarialmente “rentável”, devido ao seu grau de generalidade e à sua insusceptibilidade de venda no mercado. Trata-se de “bens públicos”, que, em princípio, têm de estar à disposição de cada um e de todos e cujos custos por isso têm de ser suportados por todos sob a forma de impostos e taxas. O seu financiamento é feito à custa dos salários e de rendimentos como os lucros, e portanto representa uma diminuição da massa de valor disponível. Por esta razão, toda e qualquer empresa procura comprimir-se diante do Fisco, enquanto, por outro lado, utiliza a infraestrutura pública.

De um ponto de vista econômico global, trata-se, no caso dos “bens públicos”, de consumo (principalmente de consumo estatal ou paraestatal), porque a parcela de valor com eles despendida fica indisponível para investimentos econômicos empresariais; e o mesmo se passa com aquilo que na linguagem usual designamos por “investimentos públicos”. Porque eles não criam lucros, mas são apenas condições gerais para que eventuais empresas se “estabeleçam” e utilizem meia dúzia de trabalhadores.

Se uma “localização” quiser ter esperanças de ter uma participação no mercado mundial, tem de manter de pé a sua infraestrutura mesmo onde já não se verifica, de todo em todo ou quase nada, uma valorização do capital (como amargamente experimentaram muitos municípios do Leste da Alemanha, que possuem zonas industriais aprovadas e com ligações às autoestradas mas nenhuma empresa em produção nelas estabelecida).

As coisas passam-se de modo estruturalmente idêntico em todas as prestações de serviços que se limitam a manter a circulação de dinheiro e de mercadorias; ou seja, atividades de distribuição e vendas, de administração comercial e de contabilidade, no setor bancário e financeiro, nos Seguros, nas atividades forenses e outras semelhantes. Também elas são indispensáveis, como condições gerais de funcionamento, para que possa ocorrer a valorização do capital, mas não produzem elas próprias qualquer valor, pelo contrário, têm de ser financiadas a partir da massa de valor criada pela indústria. Nesta medida, trata-se, neste caso, de “custos mortos” da manutenção do sistema, mesmo que se situem no plano funcional dos “bens públicos”. Esta realidade é apenas disfarçada pelo facto de as cadeias comerciais, os bancos, os escritórios de advogados, etc, serem eles próprios geridos como empresas privadas, identificando a sua participação no valor do produto social como volume de negócios e lucro, como se elas próprias tivessem produzido alguma coisa. Que esta aparência pouco corresponde à realidade demonstra-se o mais tardar logo que uma região entra nas cambalhotas da concorrência e, juntamente com o colapso da sua produção para o mercado mundial, entram naturalmente também em colapso os serviços dela dependentes, nos setores de apoio à circulação do capital, nos setores jurídicos, etc. Nesse momento, não são apenas os trabalhadores das fábricas, mas também os comerciantes e os empregados bancários que aterram, literalmente, no meio da rua. Concomitantemente, as atividades comerciais e administrativas são reduzidas, mesmo junto dos ganhadores no mercado, porque também elas, como as atividades de produção industrial, serão abrangidas pela racionalização provocada pela microelétrônica. As empresas procuram desfazer-se do peso morto que sobrecarrega os seus lucros.

Assim, os maiores elementos do “setor terciário” surgidos no passado serão, na realidade, derretidos pela crise e pela racionalização, em vez de formarem um novo setor autônomo da valorização do capital. O que sobra é o aliás crescente segmento dos “serviços prestados às pessoas”, sobre os quais a administração neoliberal da crise deposita especiais esperanças: “se se conseguisse que uma quinquagésima parte do auto-trabalho fosse transformado em trabalho pago, poderiam ser criados 800 000 postos de trabalho”, devaneia a “Comissão para os problemas futuros das Cidades Livres da Baviera e da Saxónia” (Kommission, 1997, p 117). Lamentavelmente, a isso se opõe “uma marcada mentalidade de autoajuda dos alemães” (ibid., p. 133). Com isto não se pretende dizer que uma maioria significativa da população alemã cultiva as suas hortaliças na sua pequena horta urbana, mas que ela, com uma frívola teimosia, se obstina em embalar as suas próprias compras e assoar o seu próprio nariz, em vez de contratar para isso uma prestação de serviços remunerada.

Este comportamento desavergonhado de impedimento do trabalho deve, segundo o entendimento da “Comissão do Futuro”, ser alterado para que um exército de domésticos mal pagos e ridículos sejam levados a atingir a felicidade do trabalho.

A alarvidade mais ousada está condensada nesta argumentação “psicossocial” mais do que transparente: “para além do bem-estar material, os serviços domésticos podem também proporcionar a elevação do bem estar moral. Assim, o bem-estar do cliente pode aumentar quando os prestadores de serviços o aliviarem do auto-trabalho que o sobrecarrega. Ao mesmo tempo, aumenta o bem-estar do prestador de serviços domésticos, ao aumentar a sua autoestima (!) através dessa atividade. Exercer uma simples atividade de serviço doméstico é melhor para a psique do que ser desempregado” (ibidem, p. 119). Assim é inequivocamente formulado o programa político da administração repressiva da crise, ou seja, tratamento duro contra aqueles cujo bem-estar não aumente através do engraxamento dos sapatos dos outros. Economicamente, porém, trata-se, pura e simplesmente, de otimismo inconsequente decorrente da ideologia do trabalho, pois como no caso das aparentadas “atividades de miséria” das favelas do terceiro mundo não se conseguirá desta forma fazer surgir nenhuma acumulação de capital autônoma.

Teoricamente, nada impede que o transporte de pacotes, a limpeza de sapatos ou a realização de uma massagem represente uma produção tão real como a fabricação de uma mala ou de um par de sapatos, o que é decisivo não é que o resultado do dispêndio de energia humana abstrata seja material ou imaterial. Mas os “serviços prestados às pessoas”, pela sua própria natureza, não podem ser na maior parte dos casos, ou só em condições muito estritas, desenvolvidos por forma a valorizar o capital (pense-se num grupo econômico de engraxadores ou de baby-sitters) e por isso também não são susceptíveis de desencadear uma dinâmica de acumulação autônoma. O trabalho do engraxador, da empregada doméstica, dos prestadores de cuidados pessoais, etc., integra-se nos consumos pessoais (a maior deles não particularmente opulentos) e não pode por isso ser amontoado como “trabalho morto” e tornar-se no ponto de partida para a utilização de mais trabalho.

Por esta razão, estas prestações de serviços estão, como produção secundária de mercadorias, estruturalmente dependentes do funcionamento de uma criação industrial de valor, de cujo produto se alimentam, pois não se podem manter a si próprias. Isto mesmo se demonstra à superfície da oferta e da procura: os “serviços prestados às pessoas” não substituem a produção industrial, mas desaparecem juntamente com ela, porque lhes falta então uma procura com poder de compra para isso. Estas atividades, pelo seu caráter específico, não funcionam como parte de um complexo informacional altamente socializado, mas pelo contrário, por regra, como oferta de indivíduos que utilizam pouco equipamento e sobretudo com poucos conhecimentos. Por isso elas podem, ao contrário da produção industrial, facilmente deixar de fazer parte do trabalho de produção formal de mercadorias e ser transformadas em “auto-trabalho” (o que acontece quando passo a tratar eu próprio do meu nariz) ou até passar para o setor “informal”. E por isso é um completo absurdo pensar que o sistema da sociedade do trabalho possa ser renovado desta forma. Os “serviços prestados às pessoas” não são a passagem para o Capitalismo de prestação de serviços, mas apenas a forma como as relações precarizadas e as “atividades de miséria” à margem ou, sobretudo, fora da sociedade do trabalho e da valorização do capital entram em cena nos centros ocidentais do sistema de produção de mercadorias.

Como se explica então a poderosa expansão deste setor nos últimos vinte e cinco anos? De onde provém a massa de valor de que ele se alimenta, uma vez que ele não possui qualquer capacidade autônoma de acumulação e a produção industrial de valor se derreteu? Esta questão só tem uma resposta se olharmos para o contexto geral do Capitalismo. Neste plano, é estranho que a “terciarização” ocorra paralelamente com uma aparentemente paradoxal inversão das relações entre a economia real e a superestrutura financeira. A posição de um país na concorrência mundial há muito que não depende diretamente da sua produtividade industrial capitalista (que continua naturalmente a desempenhar um papel), mas cada vez mais da capacidade de atrair o crédito e o capital especulativo em flutuação livre e de o prender ao seu próprio circuito econômico. Especialmente a potência mundial, os Estados Unidos, desenvolveu-se como um gigantesco polo magnético da liquidez a descoberto criada nos mercados financeiros transnacionais – e não é de modo nenhum um acaso que seja precisamente este país que alegadamente já terá dado o salto bem sucedido para a plena “sociedade de prestação de serviços”.

O que nos pode aparecer como dois fenômenos diferentes e apenas juntos por acaso, está, na realidade, no contexto de uma causalidade interna. Tornou-se habitual culpar os mercados financeiros usurários pelo desastre socioeconômico na maior parte do mundo e de o considerar a origem da crise. Porque praticam “margens livres”, estes setores flutuantes chamariam a si a maior parte do capital-dinheiro mundialmente disponível, que assim não poderia ser utilizado na economia real em “investimentos de postos de trabalho” e/ou para o estímulo estatal da procura. Se este capital-dinheiro, pelo contrário, fosse encaminhado para os canais corretos, e sobretudo utilizado produtivamente, então deixaria possivelmente de existir o problema do desemprego. Este modelo de análise é não só perigoso nas suas consequências ideológicas, porque, com a mobilização contra os especuladores, ressuscita (pelo menos sub-repticiamente) os ressentimentos antissemitas contra o “capital financeiro judaico” que alegadamente dominaria o mundo, como inverte a realidade da situação econômica.

Só através da gigantesca massa de liquidez a descoberto, que desde os anos setenta foi criada na superestrutura financeira, sem qualquer utilização real de força de trabalho produtora de mercadorias foi possível, designadamente aos países ocidentais, aparar transitoriamente a crise e conceder assim à sociedade de trabalho ainda um período de graça, sem que existisse, em quantidade suficiente, trabalho criador de valor. Este mecanismo de adiamento da crise através do empolamento do crédito e da especulação não é, em si mesmo, nada de novo. Ele marcou já no passado a evolução das maiores crises e terminou sempre com o crash dos mercados financeiros. Esses crashs significam que é completado de um só golpe o processo adiado da desvalorização do capital, com a consequência de falências em massa de empresas e de bancos, da explosão do desemprego, etc. O que há de novo hoje é apenas o facto de que a desregulamentação e o caráter transnacional dos mercados financeiros assim como a já antes completamente realizada desligação do dinheiro do valor-ouro terem permitido uma duração historicamente longa deste adiamento.

Além disso, o rápido endividamento dos Estados, absorvendo capital, permitiu criar o solo para uma milagrosa reprodução do dinheiro. Em geral, o crédito foi imediatamente integrado no circuito econômico – e não em último lugar para construção daqueles variados serviços e infraestruturas estatais que aos sociólogos da economia mais irrefletidos apareceu como o primeiro surto de uma “sociedade de serviços”. Na realidade, tratava-se apenas de consumo estatal e não de valorização do capital; não se tratava, portanto, de uma massa de valor em expansão real da qual os juros e amortizações se pudessem ter servido. Teoricamente, um crédito constitui uma antecipação de uma valorização esperada no futuro, ou seja, de uma futura utilização empresarial de força de trabalho. Enquanto estas expectativas se podem realizar, o crédito é o princípio motor de uma acumulação de capital dinâmica, pois o presente é com certeza permanentemente substituído pelo futuro. Mas não é esse seguramente o caso do consumo estatal financiado pelo crédito. Enquanto a massa de valor emprestada é usada, acumulam-se por parte dos credores expectativas que podem ser, por sua vez, alimentadas, como procura, no circuito econômico. E assim é que os créditos há muito requentados no consumo estatal podem levar uma vida aparente de capital incubador de dinheiro, até que a bomba rebente, quando os orçamentos estatais se aproximam do estado de emergência que consiste em os seus rendimentos reais de impostos terem de ser gastos apenas com o pagamento de juros. Foi precisamente o que aconteceu à escala mundial desde o início dos anos 80.

Na mesma medida em que o endividamento estatal atingiu o seu limite, a especulação bolsista tornou-se no motor principal do adiamento da crise. Também aqui funciona o mesmo duplo mecanismo de valorização fictícia do capital e de criação virtual de poder de compra. Mas na realidade as taxas astronômicas de valorização bolsista só são possíveis enquanto a massa da liquidez a descoberto nelas permanecer e continuar a propulsionar a espiral; apesar disso, uma parte não desprezível desta massa acaba por infiltrar-se na economia real e acaba por aí alimentar a procura de mercadorias e de serviços. E assim o empolamento dos pacotes altamente especulativos de ações é entretanto um dos principais suportes do consumo nos Estados Unidos. Uma grande parte da população compensa os seus rendimentos em queda através de crédito, cuja única cobertura são as valorizações fictícias da bolsa ocorridas nos últimos dez anos. Desta forma artificiosa ela pode, simultaneamente, criar poder de compra e continuar a participar no “jogo da corrente”, pelo menos enquanto ele funcionar. Não menos importante é a “subsidiação” dos balanços das empresas e dos Bancos através dos ganhos do mercado financeiro, sem os quais muitos setores produtivos já estariam há muito falidos, satisfazendo a procura através do expediente de investimentos, e da distribuição de lucros e rendimentos. Finalmente, o próprio Estado contribui, com a cobrança de impostos sobre todas estas transações, direta e indiretamente, para a manutenção da onda especulativa. Este é o segredo mal guardado do atual superavit milagroso do orçamento americano e principalmente do muito admirado boom da economia americana, que desde há muito assenta exclusivamente na criação virtual de dinheiro nos mercados financeiros transnacionais.

E foi assim, precisamente, a especulação demonizada pelos apaixonados pela “nobreza do trabalho” que permitiu mais uma vez, durante mais de vinte anos, que nos centros do Capitalismo fosse possível simular a continuação em funcionamento regular de uma sociedade de trabalho. Mas o período de graça chega ao fim. Pois também a subida especulativa do curso das ações “capitaliza” naturalmente uma expectativa relativamente à futura criação real de valor. Mas como nas condições da Revolução da microeletrônica o futuro não poderá já cumprir aquilo que prometeu no papel, os próprios mercados acionistas já não se prestam a esperar pelo adiamento da “desvalorização do valor”. Depois dos crashes da América Latina, da Rússia e do Sudoeste Asiático, em breve estarão também os mercados do Japão, da União Europeia e dos Estados Unidos forçosamente “maduros”. Pela onda de falências que então se desencadeará se verá qual a extensão que assumiu a crise da sociedade do trabalho.

É perante este pano de fundo que os devaneios da esquerda que vão grassando e que pretendem trocar as voltas e dominar a crise do Capitalismo através da regulação da especulação e do controlo dos mercados financeiros aparecem como particularmente fantasiosos. Eles partem do paradoxo de querer fazer “conscientemente” e com as cores de um Keynesianismo de esquerda e social-democrata aquilo que a evolução autônoma do Capitalismo já realizou completamente de forma inconsciente: ou seja, reaquecer a economia real com o dinheiro livre da superestrutura financeira e simular “postos de trabalho”. Se este caminho fosse realmente tentado, seria a ocasião para o esboroamento total do castelo de cartas. A obstinação com que são feitas essas contas de merceeiro deixa precisamente por esclarecer a sua relevância prática, mas, pelo contrário, testemunha o mesmo medo perante uma crítica categórica do sistema de produção de mercadorias e da sua forma de atividade “trabalho”, o qual aproxima também a fé da Esquerda da administração Neoliberal da crise.

Nesta perspectiva, não se podem distinguir os esconjuradores esquerdistas da “normalidade Capitalista” e defensores do imposto sobre a especulação financeira dos padrinhos do “Novo Centro”, que, com a sua retórica fanática sobre o trabalho, foram enrolados no governo. Porém, o que está para vir não é a “sociedade da prestação de serviços”, mas o definitivo colapso da sociedade do trabalho, a qual, após um colapso financeiro ocidental, não poderá já desenvolver-se nas formas de baixos salários, trabalho forçado e atividades de miséria dos excluídos. Mas já neste momento esta precarização, bem como a propaganda ao “trabalho cívico”, ao trabalho não remunerado e outros do mesmo gênero, deixaram de fazer parte de uma nova acumulação de capital, mas são apenas um conjunto de instrumentos de disciplina e de “moralização” para que o fim da sociedade do trabalho não tenha de se encarar a sério e para se poder endurecer o tratamento a dar aos “supérfluos”. Com a ficção oficial de que quem quiser pode “trabalhar” (nem que seja só por uma palmadinha nas costas) é conseguida a legitimação moral para a definição de “parasitismo social”, à qual, em nome da “nobreza do trabalho”, devem ser dadas as colorações mais sórdidas para que possa ser oferecida, como “objeto de ódio”, ao pânico crescente a que está submetida a população trabalhadora. E quem estaria mais bem colocado para exercer esta fina forma britânica de administração da crise do que o clássico “Partido do Trabalho”, associado a um jovem partido verde-oliva?

Fonte: Krisis – 1999 (em português)

Bibliografia:

  • Hirsch, Joachim (1999): Geht die Arbeit wirklich aus?, in: Jungle World, 9.6.1999, p. 15-18.
  • Komlosy, Andrea/ Parnreiter, Christof/ Stacher, Irene/ Zimmermann, Susan (1997): Der informelle Sektor: Konzepte, Widersprüche und Debatten, in diess. (Hrsg.): Ungeregelt und unterbezahlt. Der informelle Sektor in der Weltwirtschaft, Frankfurt/M., p. 9-28.
  • Kommission für Zukunftsfragen der Freistaaten Bayern und Sachsen (1997): Erwerbstätigkeit und Arbeitslosigkeit in Deutschland. Entwicklung, Ursachen, Massnahmen (Teil III), Bonn.
  • Piper, Nikolaus (1998): Langfristig sind wir tot, in: Süddeutsche Zeitung, 6.8.1998.

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