Por Eleutério Prado [1]: Tentando repercutir a tese de que, na atual conjunta histórica, é preciso opor o “comum” à propriedade privada e, mesmo, à propriedade estatal, de que, ademais, é preciso opor a democracia dos iguais à dominância de classe e, mesmo, à democracia burguesa, procura-se desenvolver aqui uma crítica à regulação social democrática. Sustenta-se, em síntese, que ela se tornou, ao mesmo tempo, uma impossibilidade e um estorvo. A tese da defesa do “comum” vem de um texto de Pierre Dardot e Christian Laval que se encontra aqui: Propriedade, apropriação social e instituição do comum.
Consciente do caráter lúgubre do momento histórico, John Maynard Keynes, escrevendo em meados da década dos anos 1930, mostrava-se descrente quanto a existência de um futuro promissor para o capitalismo se este continuasse a evolver de modo espontâneo. Era preciso que fosse encontrado um outro caminho, uma forte reorientação recuperadora. Por sua própria conta, ele permaneceria estagnado: “quanto mais rica for a comunidade, mais tenderá a ampliar a lacuna entre a sua produção efetiva e a potencial; e, portanto, mais óbvios e maléficos os defeitos do sistema econômico” (Keynes, 1983, p. 33). Que caminho, então, ele propôs para recuperar esse paciente muito impaciente?
É certo que Keynes não queria apenas salvá-lo, mas também torná-lo “mais justo”. Para tanto, ele teria de ser devidamente domesticado. [2] A política econômica teria de obter um resultado significativo na constituição de uma boa sociedade: ela deveria alcançar a “eutanásia do rentismo” [3], ou seja, a anulação do “poder cumulativo de opressão capitalista em explorar o valor de escassez do capital” (Keynes, 1983, p. 255). Destarte, o caminho que propôs foi considerado depois, no curso do desenvolvimento histórico, como consistente com o ideal social democrático.
Quando formulou, no terceiro capítulo da Teoria geral do emprego, do juro e dinheiro, o princípio da demanda efetiva, ele criou também um modo de regular o capitalismo que vai se tornar depois dos anos 1970, tanto uma impossibilidade quanto um estorvo. E o fez porque achava possível controlar as condições de reprodução do capitalismo, evitando o pior das suas recessões e das suas crises inerentes. Tratava-se, para ele, de retomar o desenvolvimento desse sistema fazendo com que servisse também ao bem-estar das famílias e da sociedade como um todo. Ele considerava, portanto, o capitalismo como controlável, moldável e suscetível de atender as aspirações humanas mais básicas. E esse desiderato tinha de provir de forte regulação dirigista da demanda efetiva.
Como se sabe, o princípio da demanda efetiva veio à luz não apenas para contrariar, mas para inverter completamente a Lei de Say. Não só não é a oferta que cria a sua própria demanda, mas, para Keynes, vem a ser a demanda que, paradoxalmente, cria a sua própria oferta. Veja-se o que, em primeiro lugar, diz:
“(…) levando em conta certas condições da técnica de recursos e de custo dos fatores por unidade de emprego, tanto para a firma individual quanto para a indústria em conjunto, o volume de emprego depende do nível de receita que os empresários esperam receber da correspondente produção. ” (Keynes, 1983, p. 30).
Em sequência, define a “demanda agregada” e a “oferta agregada” como funções do nível do emprego, considerando explicitamente a demanda como a variável ativa e a oferta como a variável passiva no ajustamento do sistema econômico ao equilíbrio. Focando o funcionamento desse sistema pela ótica da circulação de mercadorias, pensando-o a partir da perspectiva do capitalista funcionante – o empresário capitalista que não faz pela sociedade mais do que maximizar sempre o próprio lucro –, então, completa:
“Assim, o volume de emprego é determinado pelo ponto de interseção da função da demanda agregada e da função de oferta agregada, pois é neste ponto que as expectativas de lucro dos empresários serão maximizadas” (Keynes, 1983, p. 30).
Assim, é evidente, Keynes contraria o mito principal da “teoria clássica”, isto é, a teoria em que se formou como economista, mas também como filósofo social, e que nunca deixou de condicionar em certa medida o seu modo de pensar; eis que, para ele, o equilíbrio do sistema não se dá necessariamente no “pleno emprego”. Aberta a possibilidade de que esse equilíbrio se dê em pontos inferiores àquele “em que a oferta agregada deixa de ser elástica”, a política keynesiana passa a recomendar que se deve fazer tudo o que se afigura necessário para tornar otimistas as perspectivas de lucratividade desses eternos benfeitores da humanidade, isto é, dos empresários capitalistas.
Grosso modo, pode-se dizer que, para Keynes, o volume do emprego depende em última análise do nível do investimento e este da altura da taxa de lucro esperada – enganosamente rebatizada de “eficiência marginal do capital” – frente às taxas de juros:
“O montante de investimento corrente dependerá, por sua vez, do que chamaremos de incentivo para investir, o qual (…) depende da relação entre a escala da eficiência marginal do capital e o complexo das taxas de juros que incidem sobre os empréstimos de prazos e riscos diversos. ” (Keynes, 1983, p. 31).
Supondo que o salário do trabalhador em geral esteja fixado nominalmente, isto é, em certo montante de dinheiro, Keynes chegou à conclusão de que, dada a escala da oferta de força de trabalho, o poder de compra do salário ou salário real é uma variável que fica determinada pelo funcionamento global do sistema:
“A propensão a consumir e o nível do novo investimento é que determinam, conjuntamente, o nível do emprego, e é este que, certamente, determina o nível dos salários reais – não o inverso. Se a propensão a consumir e o montante de novos investimentos resultam de uma insuficiência de demanda efetiva, o nível real do emprego se reduzirá até ficar abaixo da oferta de mão-de- obra potencialmente ao salário real em vigor. ” (Keynes, 1930, p. 33).
Keynes via a situação vigente no momento em que escrevia como sombria, sustentando, entretanto, que era possível contorná-la e superá-la. Ora, dentro dessa perspectiva, denunciado já o mito do equilíbrio espontâneo de pleno emprego, põe-se então para ele, como decorrência necessária, a exigência de que o funcionamento do sistema capitalista como um todo viesse a ser regulado pelo Estado para produzir bem- estar e desenvolvimento humano. Para tanto, bastava grosso modo que o Estado fosse capaz de regular convenientemente a demanda efetiva. Assim, com o seu endosso e sob a cobertura de sua autoridade intelectual, um novo mito vai ser criado.
Segundo ele, o capitalismo deve ser mantido porque se constitui como uma fonte da liberdade negativa, da livre iniciativa, mesmo se tem alguns defeitos. Os dois proeminentes que aponta são a tendência para gerar uma má distribuição das rendas e das riquezas e a incapacidade de proporcionar sempre o pleno emprego da força de trabalho. Para o primeiro problema, sugere que o Estado deve implementar políticas de redistribuição da renda e da riqueza, como, por exemplo, a instituição de pesados impostos sobre as heranças. Para o segundo, propõe uma política de condução estatal da acumulação de capital na esfera da produção de mercadorias reais: “uma socialização algo ampla dos investimentos” – indica – “será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego” (Keynes, 1983, p. 256).
Por socialização, ele entendia não a instituição da propriedade estatal dos meios de produção, mas a mobilização constante da capacidade do Estado para determinar globalmente o volume da acumulação privada. E isto implica, por um lado, em “determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios” e, por outro, “a taxa básica de remuneração de seus detentores” (Keynes, 1983, p. 256). Isto é, torna-se necessário vir a regular as finanças públicas e privadas por meio da política fiscal e da política monetária, tendo em vista induzir o crescimento do investimento e, assim, do emprego.
Segundo ele, não se trata de cercear a “paixão pelo lucro” que acomete “uma fração importante da comunidade”; eis que “a tarefa de administrar a natureza humana não deve ser confundida com a de modificá-la” (Keynes, 1983, p. 254). Pondo aqui e agora entre parêntese a sua adesão à uma antropologia positivista e, portanto, metafísica, que apresenta como essência humana uma característica que o sistema econômico moderno acentua ao máximo nos indivíduos que aí prosperam, é preciso ainda sim perguntar: até que ponto tal administração é realmente possível e, portanto, eficaz na condução do capitalismo?
Keynes tinha total clareza que tal reformulação do papel do Estado na gestão dos funcionamentos do sistema econômico só seria possível mediante a liberação da política econômica dos constrangimentos do padrão-ouro internacional. Na Teoria Geral, em seu capítulo final, mencionou explicitamente que, sob tal regime de câmbio, um governo qualquer não teria possibilidade de atuar na manutenção do emprego em seu próprio país a não ser conquistando mercados externos. Como a política econômica encontrava- se atrelada ao objetivo da manutenção das reservas monetárias internacionalmente válidas, isto é, em dinheiro-ouro ou nele conversíveis, ela apenas podia contribuir para a manutenção do emprego internamente quando conseguia melhorar o balanço de pagamento em conta corrente.
O que significa, no entanto, o abandono do padrão ouro internacional e, assim, do câmbio fixo, do ponto de vista da própria sociabilidade capitalista? Como se sabe, as relações sociais nesse modo de produção são indiretas, isto é, se dão pela mediação das trocas de mercadorias, sob a forma aparente-real de relações sociais entre coisas. Keynes, diante de um questionamento de pares que reclamava dos riscos associados ao abandono da normatividade objetiva imposta pelo padrão ouro, exclamou com desdém que o ouro monetário era apenas uma relíquia bárbara. Mas ele próprio forneceu uma pista quando escreveu o que se segue em sua obra maior:
“(…) numa economia sujeita a contratos e costumes monetários mais ou menos fixos por um período de tempo apreciável, na qual o dinheiro em circulação e a taxa de juros interna dependem, principalmente, do balanço de pagamentos (…), as autoridades não dispõem de meios ortodoxos para combater o desemprego no país, a não ser por um excesso de exportação e, assim, importação do metal monetário, às custas de seus vizinhos” (Keynes, 1983, p. 238).
Ora, Keynes aqui mostra a razão pela qual recomendou o abandono do padrão ouro: era preciso quebrar a norma vigente para tornar mais flexíveis os “costumes monetários”. Como interpretar, no entanto, essa flexibilização? Para responder a essa questão, note-se de modo preliminar que Keynes ficou conhecido como aquele grande pensador do funcionamento global do sistema econômico capitalista que não assumiu como embasamento válido de suas teorizações a teoria do valor trabalho, mesmo nas versões de Adam Smith e David Ricardo.
Mas, para encontrar uma resposta à pergunta formulada, é preciso fazê-lo aqui, adotando logo a teoria do valor de Karl Marx. Ao se fazer isso, percebe-se que, ao abandonar o padrão ouro no plano das instituições reguladoras do capitalismo, obrigava-se o próprio modo de produção a renunciar também, até certo ponto, o pressuposto objetivo (uma regra implícita no funcionamento dos mercados) de que as trocas, sob a regulação inconsciente e estrita do valor, têm de acontecer, em média e em princípio, segundo a correspondência das mercadorias aos preços de produção. [4] E o “até certo ponto” se justifica como adjetivo qualitativo que se junta ao substantivo “abandono” porque não se trata de uma negação absoluta da norma, que é intrínseca ao capitalismo, mas de uma “flexibilização” que, evidentemente, abre a possibilidade de que distorções crescentes nos preços sobrevenham, alterando assim o comportamento global do sistema. [5]
Evidentemente, ao desenvolver as suas formulações teóricas, Keynes propunha que era necessário tornar mais flexíveis alguns “preços” muito especiais: o salário, o câmbio e a taxa de juro. Ele alegava e mesmo julgava que isso era necessário para que o Estado pudesse combater mais eficientemente o desemprego, tornando-se capaz de garantir o bem-estar das populações que habitavam os estados nacionais. Ele associava o padrão ouro internacional às guerras imperialistas, mencionando que a paz mundial só poderia ser alçada se os estados nacionais pudessem combater a falta de emprego por meio de uma política econômica voltada para objetivos domésticos.
Ora, Keynes sabia perfeitamente, mesmo se constantemente recitava ao contrário, que “o valor de uso [e, portanto, o emprego e o bem-estar] nunca deve ser tratado (…) como a meta imediata do capitalismo” (Marx, 1983A, p. 129). Logo, o objetivo implícito de sua proposta reformadora, em última análise, era desimpedir e facilitar o caminho da acumulação de capital. Ele encarava isto, é evidente, como uma condição necessária, mas insuficiente. Na conjuntura depressiva dos anos 1930, mas também no futuro pensável do capitalismo, era necessário aceitar não apenas a volta do “lucro isolado”, mas também, sobretudo, do “incessante movimento do ganho”, tal como havia dito, com outra intenção, aquele autor que ele detestava.
A economia política de John Maynard Keynes é, pois, a tomada de consciência de que os preços no capitalismo, por causa das lutas internas das classes e das lutas externas entre as nações, encontravam-se já politizados [6] em meados do século XX e, que, em consequência, era preciso aprofundar essa politização capacitando o Estado a manipulá-los de acordo com os interesses da acumulação de capital. Ora, se o Estado interfere nos preços tradicionalmente por meio da política de taxação e subsídios, agora era preciso que fosse capaz de fazê-lo também por meio de uma operação abrangente da política econômica, isto é, da política salarial, da política monetária e fiscal e da política cambial. Para tanto, como já ficou claro, era preciso renunciar ao padrão ouro, passando assim a sabotar, implícita e sistematicamente, a regulagem do valor sempre que necessário. E essa sabotagem passa a ser considerada válida desde que venha contribuir, efetivamente, para a continuidade insaciável do “crescimento econômico”.
Mas que mundo econômico foi de fato criado pela institucionalização das práticas keynesianas, as quais, mesmo sendo produtos do engenho humano, emergiram porque se tornaram necessárias ao desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista? Aqui, em primeiro lugar, é preciso ver que a renúncia ao padrão ouro clássico possibilitou tornar as políticas monetária e fiscal muito atuantes na sustentação da demanda efetiva. Assim, o Estado passou a poder elevar o gasto público para induzir o crescimento do gasto privado; passou a poder manipular as variáveis monetárias (as taxas de juros, por exemplo) para induzir, por meio da criação de crédito, a expansão do investimento e do consumo privados; passou a atuar direta ou indiretamente na taxa de câmbio, influenciando assim a importação e a exportação de mercadorias. Ora, essa mudança como um todo, olhando pelo seu lado reverso, consistiu em última análise em dotar o Estado – inclusive, por meio da criação ou remodelação dos bancos centrais –, da capacidade de administrar a criação de capital fictício, ou seja, de capital que não subordina diretamente força de trabalho produtiva e que, portanto, não extrai diretamente mais-valor, mas alavanca em certa medida o investimento produtivo de valor e, assim, a produção de mais-valor. Essa forma de capital não é supérflua no capitalismo, ao contrário, é o nervus rerum do sistema financeiro como um todo.
Note-se que capital fictício consiste simplesmente de um direito formalizado à obtenção de um retorno futuro majorado de valores monetários dados em empréstimo. Assim, o montante de capital fictício existente vem a ser criado ou destruído quando ocorre, respectivamente, expansão ou contração seja do estoque de títulos públicos seja do estoque de títulos privados em consequência da criação de novas ou cancelamento de velhas dívidas. E essa observação é importante porque a emissão de capital fictício consiste em colocar uma renda futura apenas possível à serviço de um crescimento (verdadeiro ou falso) presente que se afigura como impossível.
Marx disse que o capital funcionante, com a ajuda imprescindível de seus suportes humanos, cria para si barreiras, supera essas barreiras, para criar novas e mais poderosas barreiras. Keynes esforçou-se diligentemente para formular uma teoria, por suposição “bem geral”, que apresentasse com certo rigor científico um modo de atuação estatal que permitisse sempre superar tais barreiras. E o seu método pareceu funcionar por décadas até ser pego de surpresa, na década dos anos 1970, por uma crise estrutural que se manifestou por meio de estagflação. O neoliberalismo ascendeu, então, como uma nova grande síntese ideológica dos defensores do capitalismo, com a pretensão de fornecer orientação prática, discursiva e instrumental, uma nova racionalidade, para a condução da vida econômica como um todo no capitalismo.
O neoliberalismo, ao invés de propugnar por um retorno ao padrão ouro, recomendou, por um lado, que se abandonasse o caráter socialdemocrático da solução keynesiana e, por outro, que se aprofundasse o seu método capitalista de enfrentar as crises. Passou a indicar que a rota de fuga da acumulação travada deveria vir da criação, agora desbragada, de capital fictício em nível mundial, ou seja, aquilo que foi chamado de globalização financeira, financeirização do capitalismo (ou imperialismo). Depois de um período turbulento de cerca de trinta anos, em que estouraram várias bolhas financeiras nas economias do mundo globalizado, o capitalismo parece ter voltado ao mesmo estado lúgubre e desesperançado que motivara Keynes a escrever a Teoria Geral.
Marx, escrevendo em meados do século XIX, e nesse ponto acompanhando simplesmente a literatura econômica da época, indicara já que o sistema de crédito cumpre diversas funções no funcionamento do capitalismo e que ele, na verdade, lhe é necessário e intrínseco. Como o crédito vem a ser sempre uma operação de antecipação, ao elencá-las, apontou enfaticamente que, se possibilita acelerar o processo de reprodução do capital, ele consiste também de uma fonte permanente de especulação e de negócios fraudulentos. Em especial, agora com originalidade, acentuou que o desenvolvimento do sistema de crédito transformava o capital privado em capital social (capital de indivíduos diretamente associados) e que esse rumo de mudança era uma tendência imanente ao capitalismo. A socialização do investimento não é, portanto, uma ideia luminosa que surge na cabeça privilegiada de John Maynard Keynes. É já uma resposta à demanda do tempo histórico que reclamava uma reorganização do sistema monetário e de crédito visando atender à socialização do processo de acumulação.
Sobre o duplo caráter do crédito acima mencionado, eis que o que Marx escreveu:
“Se o sistema de crédito aparece com a alavanca principal da superprodução e da superespeculação é só porque o processo de reprodução, que é elástico por sua natureza, é forçado aqui até seus limites extremos. E é forçado precisamente porque grande parte do capital social é aplicada por proprietários [de títulos], que procedem, por isso, de maneira bem diversa dos proprietários [de indústrias], os quais avaliam receosamente os limites de seu capital privado, à medida que ele mesmo funciona” (Marx, 1983B, p. 335).
A enorme reorganização do modo de operação do sistema econômico e, dentro dele, do sistema de crédito, a qual foi teorizada cientificamente por meio da criação do campo da macroeconomia, não é também uma mera ideia que brotou sem raízes na cabeça de um gênio. A ideia de aparelhar o Estado para alavancar a acumulação por meio das políticas monetária e fiscal, mesmo que se tenha configurado como uma resposta criativa e sútil, estava inscrita como possibilidade ou mesmo como necessidade abstrata na própria lógica de evolução do modo de produção capitalista.
Dado o caráter antitético das tendências que lavram no interior desse modo de produção, ele se desenvolve sem peias apenas até certo ponto; eis que certos limites imanentes sempre se apresentam em seu próprio desenvolvimento e estes precisam ser “rompidos pelo sistema de crédito de maneira incessante” (Marx, 1983B, p. 335). É, pois, a depressão dos anos 1930 que explica, como principal razão de fundo, a emergência do keynesianismo. No entanto, o caráter duplo do crédito não permaneceu na consciência viva de todos os keynesianos, especialmente daqueles que se fiaram na explicitação e, assim, na reformulação das ideias de Keynes em modelos de equilíbrio. Nada souberam, assim, da seguinte advertência de Marx:
“O sistema de crédito acelera, portanto, o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial, as quais, entretanto, enquanto bases materiais da nova forma de produção, devem ser desenvolvidos até certo nível como tarefa histórica do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises e, como isso, os elementos da dissolução do antigo modo de produção” (Marx, 1983B, p. 335).
Ora, é possível sustentar que os keynesianos em geral e mesmo o próprio Keynes não parecem ter tido consciência dos limites da atuação estatal na alavancagem da acumulação de capital em prol do crescimento. A relação de capital não é uma relação social racional; ao contrário, em seu evolver, ela se torna frequentemente desmedida e mesmo demente: arrasta, então, a civilização à barbárie. Mesmo se um autor como Hyman Minsky tenha chegado bem perto dessa compreensão quando pensa na fragilidade financeira do capitalismo. Eis que os keynesianos não estão dispostos a pensar o capital como uma relação social objetiva que se reproduz por meio de um automatismo social. Dito de outro modo, eles não estão dispostos a pensar o capital como um sujeito automático que tem os próprios capitalistas como seu suporte humano. Impossibilitados de superar o individualismo metodológico, não veem que a acumulação de capital atrela e subordinada ao seu movimento insaciável as vontades e as consciências individuais e individualistas dos agentes capitalistas e mesmo, até certo ponto, dos trabalhadores. E esse movimento é, em última análise, irracional.
Um artigo recente de extração keynesiana, o qual procurou avaliar o esforço de regulação e de contenção dos mercados financeiros após a crise de 2008, entretanto, parece ter chegado implícita e inconfessadamente a esse ponto crucial. Em seu artigo, Epstein e Montecino (2015) mencionam, primeiro, que a Lei Glass-Steagall, a qual regulara os mercados financeiros nos Estados Unidos desde 1933, foi repelida em 1980, dando partida ao processo de desregulação financeira nesse país, com consequências mundiais. Após a quebra de 2008, precisamente em 2010, como resposta aos “excessos financeiros que [segundo eles] levaram à crise” foi então criada a Lei Dodd-Frank que permaneceu em vigor desde então. Diante de certa fragilidade que ainda está presente na economia mundial, e mesmo nos Estados Unidos, a tarefa que propuseram para si mesmos consistiu em descobrir e mostrar “quanto de fato havia mudado o sistema financeiro” na vigência dessa lei. Eis que é preciso reportar aqui e agora, por extenso, o resumo de suas conclusões:
“No presente relatório, examinamos as tendências do sistema financeiro e bancário dos Estados Unidos antes e durante a crise financeira, assim como depois da aprovação da Lei Dodd-Frank. Mostramos que o sistema financeiro, desde então, tornou-se mais seguro e mais resilente de vários e importantes modos. Restrições de alavancagem e de manutenção de capital reverteram a perda de capacidade de absorver impactos do sistema bancário; ao reduzirem explicitamente os níveis de alavancagem melhoraram a resilência do sistema bancário. ” (Epstein e Montecino, 2015, p. 2).
Ora, se fazem primeiro essas afirmações sedativas, as quais, assim, não sufocam toda esperança, é para, em sequência, desmenti-las de um modo exasperante e paradoxal:
“Muitas tendências do sistema financeiro como um todo, porém, não se modificaram. As práticas e os modelos de negócios básicos dos grandes bancos não se alteraram fundamentalmente. Há mesmo novas e preocupantes práticas e tendências nos mercados financeiros. Em particular, a expansão do “sistema bancário sombra”, assim como o aprofundamento de suas interconexões com a gerência dos ativos e mesmo com os próprios bancos estão fazendo surgir novos perigos para a estabilidade do sistema. ” (Epstein e Montecino, 2015, p. 2).
Depois de elencar diligentemente os males e os perigos que rondam o sistema econômico norte-americano na atual conjuntura e, por extensão, a economia mundial, eles convêm o seguinte:
“O resultado é que, apesar dos trilhões de dólares gastos pela Reserva Federal, pelo Departamento do Tesouro, e assim por todos aqueles que pagam os impostos, com a finalidade de dar suporte ao sistema bancário dos Estados Unidos, este continua a se remunerar generosamente por suas próprias atividades, ao mesmo tempo em que contribui relativamente pouco para a saúde da economia e da sociedade. (…) enfim, muitas das tendências que os críticos continuam a apontar após a vigência da Lei Dodd-Frank são simplesmente continuações de tendências várias que se desenvolveram antes dela ser aprovada. ” (Epstein e Montecino, 2015, p. 2).
Ora, em primeiro lugar, o dispêndio de trilhões veio justamente para manter e conservar o sistema financeiro assim instituído – e não com o propósito de revertê-lo em uma instituição beneficente que desse suporte a um “socialismo burguês”, bem limitado. Ademais, o bem-estar social, apesar de almejado sinceramente pelos economistas keynesianos, não vem a ser a finalidade precípua dos capitais monetários e financeiros já que, segundo a lógica própria do sistema, eles se movem e devem se mover pelo maior lucro possível, continuamente. É evidente, também, que o problema não é, como dizem os marxistas keynesianos, de hegemonia do capital financeiro em relação ao capital funcionante, mas sim o da entrada sem possibilidade de recuo em mais um momento do processo de socialização do capital [7] – agora em escala mundial (Prado, 2015A e 2015B). Nesse sentido, o momento neoliberal é uma continuação, com alguma ruptura, do momento keynesiano que durou cerca de 40 anos. O resultado da própria pesquisa de Epstein e Montecino é já, portanto, uma constatação: a regulação social democrática do capitalismo tornou-se um estorvo. Por isso mesmo, se os keynesianos em geral querem de fato respeitar a história, desenvolvendo pesquisa que vai à raiz das coisas, eles deveriam fazer uma constatação final: a moderação do capitalismo já chegou ao seu longo prazo e, por isso, está morta. [8]
É preciso encontrar novas alternativas radicalmente democráticas para enfrentar o neoliberalismo e elas envolvem, necessariamente, a luta pelo “comum”, pela negação histórica do capitalismo.
Fonte: A Luta pelo “Comum” – Blog Autonomia e Complexidade
Notas:
[1] Professor titular e sênior da FEA-USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: http://eleuterioprado.wordpress.com. O autor agradece os comentários críticos de Fernando Ferrari Filho, Jorge Nóvoa, que não têm qualquer responsabilidade pelo que aqui vai escrito.
[2] Costuma-se opor a “casa” ou a “propriedade pública” ao capitalismo. Ora, uma e outra são apenas reversos correlativos, negativos próprios, da propriedade privada que funda o capitalismo. Sem endossar o “associacionismo” dos autores, é instigante a tese de Dardot e Laval, segundo a qual se deve opor a ele tão somente o “comum” (2015). Entretanto, é bem óbvio que este não é o caso de Keynes; ele queria apenas tornar o capitalismo mais consistente com uma vida civil e doméstica mais civilizada.
[3] Para Keynes, o rentismo é o modo de ganho do proprietário privado ausente da esfera da produção da das mercadorias reais. Nessa perspectiva, os juristas se tornam também rentistas. Ora, isto confunde o capital financeiro com a propriedade fundiária. E, ao fazê-lo, tende a personificar o sistema financeiro com a esfera em que dominam os rentistas, de um modo que se aproxima do antissemitismo.
[4] É sabido que Marx, ao longo dos dois primeiros livros de O Capital, assume provisoriamente que as trocas no modo de produção capitalista se orientam pela equivalência. É sabido, também, que ele apontou existir constantemente incongruência (desproporcionalidade) entre o preço e a grandeza de valor no curso dos processos da troca. Tal incongruência, no entanto, segundo ele, não é um defeito da forma preço: pelo contrário, trata-se da “forma adequada a um modo de produção em que a regra somente pode impor-se como lei cega da média à falta de qualquer regra” (Marx, 1983, p. 92). No volume terceiro de O Capital, porém, ele mostrou que essa regra, um pressuposto objetivo do funcionamento do sistema, tinha de ser modificada para levar em conta que, em condições de concorrência não monopolista, os preços de mercado têm de se orientar pela correspondência aos preços de produção.
[5] Essa possibilidade aparece em O Capital, por exemplo, quando Marx fala da possibilidade de rebaixar por um tempo longo os salários reais dos trabalhadores para que fiquem aquém do custo vigente de reprodução da força de trabalho.
[6] Isto é, haviam já se transformado em objeto de política econômica.
[7] É preciso citar aqui Maurizio Lazzarato sem endossar, porém, nem a sua pretensa “desconstrução da dialética” nem o seu abandono da categoria “valor-trabalho”. Pois, a sentença seguinte, por meio da qual ele caracteriza o capitalismo contemporâneo, parece bem correta: “na verdade, o capital não está confinado ao capital industrial e comercial, mas inclui também o capital financeiro com seu ponto final; é somente este último que vem dar unidade e coerência ao capitalismo, constituindo-o como um todo integral. Consequentemente, a formula do capital financeiro (M – M’) representa a forma “mais pura” da dinâmica do capital, dinheiro que se autovaloriza apropriando-se de todas as outras formas de valor” (Lazzarato, 2015, p. 214).
[8] O keynesianismo permanece apenas como crítica moderada e quixotesca dos rumos atuais da política econômica que, como sempre, procura levar o capitalismo para a frente.
Referências:
Dardot, Pierre; Laval, Christian – Propriedade, apropriação sócial e instituição comum.
In: Tempo Social, vol. 27 (1), p. 261-273.
Epstein, Gerard; Montecino, Juan A. – Banking from financial crisis to Dodd-Frank: five years on, how much has changed? In: PERI – Political Economy Research Institute, 2015.
Keynes, John M. – Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Lazarrato, Maurizio – Governing by debt. Cambridge: The MIT Press, 2015.
Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Volume I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983A.
– O capital – Crítica da Economia Política. Volume 3, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983B.
Prado, Eleutério F. S. – Questionando a macroeconomia da “grande recessão”. Blog do autor, 2015A.
– De uma crítica classista ao neoliberalismo. Blog do autor, 2015B.
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