DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, GESTÃO URBANA E CAPITALISMO DE CRISE
– Gabriela Salvarrey, Felipe Drago e Márcia Tolfo (editores): Este e-book é resultado de um curso à distância sobre democracia participativa, gestão urbana e capitalismo de crise, ocorrido entre fins de 2012 e meados de 2013. Em si, o curso teve especial ênfase nos caminhos populares e nas políticas públicas, nas áreas de planejamento e gestão urbana, habitação popular, meio ambiente e segurança.
Seus doze capítulos consistem nas aulas introdutórias dos doze módulos do curso, promovido em conjunto pela ONG Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos, Transnational Institute (TNI) e Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO). Junto das aulas introdutórias é possível encontrar os hiperlinks para os textos base de cada módulo.
Neste e-book você encontrará textos em português, espanhol e inglês. Alguns textos, cujo idioma do professor responsável é o português ou o espanhol, estão na língua nativa. Outros, em inglês, foram traduzidos apenas para o espanhol e assim apresentados no curso. Outros, ainda, ficaram sem tradução: os dois últimos, de Ananya Roy e Hilary Wainright, estão em inglês.
Introdução:
(Por Sérgio Baierle)
Em 2007 realizou-se em Porto Alegre o Seminário Internacional “The Future of Participatory Democracy: Technical Fix or Popular Sovereignty”. Um dos painelistas foi Aran Aharonian, então diretor da Telesur Venezuela. Uma das perguntas feitas a ele fazia uma crítica feroz à Globo, maior rede brasileira de televisão. Era reivindicada a não renovação da concessão estatal para o funcionamento da Globo. No Brasil, canais de TV e rádio são concessões do Estado por prazo determinado, invariavelmente renováveis. Aran respondeu com outra pergunta: E o que vocês teriam para colocar no lugar da Globo? Como ficariam seus milhões de expectadores? A inversão de Aran causou um certo choque, pois colocava em questão a satisfação de uma necessidade que se tornou tão vital quanto comer, vestir, morar e vender a força de trabalho: a espetacularização da vida social, como em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.
Obviamente a rede Globo não teve sua licença cancelada, muito ao contrário. O problema hoje é talvez o inverso, pois mesmo doses cavalares de espetacularização parecem insuficientes, como mostra o transbordamento de ações performáticas para fora do reino da passividade consumista individual nas redes sociais ou o sucesso de heróis psicopatas em séries de TV (Eshelman, Kotsko). O próprio ideário da democracia participativa é que foi sendo progressivamente pasteurizado e desidratado para caber nas fórmulas de gestão da pobreza e governamentalidade cívica do Banco Mundial e agências de desenvolvimento em geral. Para surpresa geral, entretanto, 4 anos após aquele modesto seminário em Porto Alegre, milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo no mundo árabe, na Europa e nos Estados Unidos, passaram a ocupar praças para denunciar falhas irreversíveis na própria matriz da sociedade do espetáculo, o capitalismo.
Embora ainda reine muita confusão na interpretação do que vem sendo chamado como capitalismo de crise (Robert Kurz, Anselm Jappe), com alguns autores vendo mais um deslocamento de “placas tectônicas” rumo ao oriente (Wallerstein), outros insistindo que se trata apenas de mais uma crise gerada pela insistência na financeirização neoliberal, corrigível através de uma melhor regulação estatal (Attac, Harvey) e outros ainda, em crescente número, já reconhecendo que o capitalismo acabou em algum momento em meados dos anos 70 mas que, apesar disso, catastroficamente, continua sendo the only game in town (Carl Cederström and Peter Fleming).
Como não poderia deixar de ser, as exigências da valorização do valor impostas por sucessivos novos paradigmas de produtividade terminam por minar de vez não apenas os compromissos políticos de classe em que se baseavam os arranjos socialdemocratas e seus simulacros, mas também o próprio espaço do político enquanto conflito e indeterminação. As eleições transformam-se em meras escolhas logísticas para a única ação possível: reduzir custos (impostos, meio ambiente, salários, saúde, educação, pensões e aposentadorias, etc.) e favorecer por todos os meios possíveis os interesses do capital (Vainer).
Como explicar que países como a China ou o Brasil invistam pesados recursos públicos para viabilizar megaeventos (Olimpíadas, Copa do Mundo) quando seus sistemas de saúde pública, por exemplo, são absolutamente precários e insuficientes? Porque é preciso primeiro gerar valor para depois distribuir, ainda que ao preço de remover milhares de famílias em favor da especulação imobiliária? Não é o Brasil um país que se orgulha de suas políticas de gestão da pobreza, não é a China um país que defende o socialismo de mercado? Temos de reconhecer que não se tratam de ações irracionais, mas de pura racionalidade de mercado, ainda que se revelem socialmente fascistas (Boaventura Santos).
A ideia do curso surgiu da necessidade de reagirmos ao brutal esvaziamento do espaço político e à redução da democracia a uma arapuca sem saída: escolher quem melhor pode administrar o Estado de Exceção. Ao mesmo tempo que as experiências de democracia em geral dão sinais de crescente inefetividade no contexto do capitalismo de crise, multiplicam-se ao infinito os espaços e as tecnologias de mediação Estado – Sociedade no âmbito da chamada democracia participativa, bem como a sua promoção por parte das agências de desenvolvimento. É como se a democracia falhasse devido a um defeito cívico de seus cidadãos, corrigível por meio de técnicas motivacionais e de incentivos adequados administrados homeopaticamente pelo Estado. Por toda parte os governos convocam a sociedade a dar sua contribuição para remediar o irremediável, reciclar uma outra vez os não rentáveis, absorver os custos inflacionários dos trilhões de ajuda aos bancos, promover a coesão social e as identidades nacionais em meio à mercantilização generalizada e predatória dos bens comuns.
Saudadas nos anos 90 como alternativas locais ao desmantelamento das redes públicas de proteção social promovidas pelas políticas neoliberais, tendo como caso emblemático o exemplo do Orçamento Participativo de Porto Alegre, a maior parte das experiências recentes de democracia participativa encontra-se num brete. Não apenas se verifica um abismal hiato entre o discurso e a prática de parte dos governos que as implementam, como tampouco as classes populares ampliam sua capacidade de organização, inteligência estratégica e pressão social.
Como desenvolver uma práxis consistente para os tempos que se avizinham sem aprender simultaneamente com os movimentos sociais antigos e recentes, bem como compreender melhor os seus impasses e limitações? Pensado a partir do Brasil, o curso tal como proposto tem um sotaque brasileiro muito forte, que esperamos seja provocador e não inibidor de um diálogo internacional.
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