Por Sérgio Baierle:
“O recente outono brasileiro mostrou, além da indistinção política e do poder das ruas, a falência múltipla da parafernália participativa no Brasil. Há muito tempo o presidencialismo de coalizão, junto com os simulacros de participação embutidos em conferências, conselhos e orçamentos participativos tornaram-se sistematicamente hidropônicos. Longe, muito longe da vida real.” –
“Política é a arte de impedir as pessoas de se envolver naquilo que tem a ver com elas”
Paul Valéry[1]
O recente outono brasileiro mostrou, além da indistinção política e do poder das ruas, a falência múltipla da parafernália participativa no Brasil. Para uma revolta generalizada explodir com tanta força, é porque há muito tempo o presidencialismo de coalizão, junto com os simulacros de participação embutidos em conferências, conselhos e orçamentos participativos tornaram-se sistematicamente hidropônicos. Longe, muito longe da vida real nas grandes cidades.
Em meados dos anos 90, Porto Alegre chegou a ser considerada a Meca da democracia participativa no mundo, fama que se alastrou sobretudo com os fóruns sociais mundiais. Ainda hoje, com a experiência em franco retrocesso, continuam chegando pesquisadores, ativistas e equipes de governo querendo conhecer de perto o orçamento participativo (OP). “A cidade não sempre foi, não sempre será e talvez já não seja”, como diria Nancy[2]. O contraponto autonomista à Porto Alegre foi Chiapas, “onde manda o povo e o governo obedece”. Depois, Caracas virou a Meca, com os conselhos comunais chavistas emulando uma conciliação entre autonomia e institucionalidade (leia-se governo).
No contexto dos anos 90, com o neoliberalismo a todo vapor, a simples existência de um governo local aberto aos projetos das classes populares tornava-se o inédito viável para os movimentos sociais urbanos. Centenas de cidades brasileiras e milhares ao redor do mundo realizaram experiências de orçamento participativo. A agenda da participação acabou sendo incorporada e promovida por organismos internacionais e agências de desenvolvimento, tais como o Banco Mundial, ONU/PNUD, Usaid, Ford, Inter-American Foundation, Dfid, Oxfam-Novib, ActionAid, Misereor, Gtz, Cida, entre muitas outras.
Na virada do milênio, entretanto, as ferramentas de democratização da gestão local, depuradas de suas raízes políticas e convertidas em simples fórmulas, passaram a integrar a agenda neoliberal. Obviamente que no sentido de uma cooptação estratégica, enquanto tecnologia de poder. Assim como a financeirização globalizada da economia desenvolveu instrumentos de avaliação e precificação de risco (derivativos, por exemplo), também foi reconhecida a urgência de avaliar e precificar a coesão social (a pacificação da luta de classes), através de instrumentos de inclusão condicionada e controle. Com algumas modificações genéticas, orçamentos participativos, consehos setoriais, mesas técnicas e de concertación, bem como a gestão comunitária de políticas públicas, passaram a integrar o cardápio do “neoliberalismo inclusivo”[3]. A emancipação social foi literalmente limada dos discursos governamentais. Ficou apenas a gestão da pobreza, ou seja: a funcionalização dos pobres. Ou ainda, num conceito mais palatável à maior parte da chamada esquerda, a boa governança (o “Triângulo das Bermudas”: Estado, Setor Privado, ONGs). Assim como os riscos de um colapso da alta finança, os riscos de surtos de luta de classes seriam preventivamente banidos. Foi preciso, então, a crise econômico-financeira de 2008 para fazer entender que não existe capitalismo sem crise, seja com Milton Friedman ou John Maynard Keynes.
De 2008 para cá, vivemos num estranho mundo em que o neoliberalismo mesclado com um certo keynesianismo financeiro não logra reanimar o animal selvagem capitalista, mas tampouco existe outra alternativa em curso, embora cresçam as revoltas ao redor do mundo. Como estrelas que morrem deixando um rastro evanescente de luz, vigora hegemonicamente ainda a fé num capitalismo regulado pelo Estado e socialmente inclusivo, por mais que os estados nacionais pulem como palitos presos na corda comum da globalização capitalista, na bela imagem de Augustín Cueva que não me saiu da memória[4].
Não há como pensar numa agenda de democratização sem reconhecer os limites do contexto em que vivemos atualmente. Tudo na vida tem os seus ciclos, o do reformismo acho que acabou, felizmente ou infelizmente. A narrativa da democracia no Brasil remonta às reformas inacabadas do século XX, tal como se afirmavam no pré-1964 e que depois foram retomadas no pós-1985. A integração econômica dos trabalhadores urbanos formais vinha se dando, desde a CLT nos anos 40, subordinada ao sindicalismo de Estado[5]. Faltava a formalização político-partidária da luta de classes como constitutiva do pacto de poder (liberdade de organização política e autonomia sindical), transformando nosso Ex-Estado Populista numa social-democracia nos moldes fordistas-keynesianos do pós-II Guerra. A ditadura militar, porém, nos devolveu novamente ao país sem povo das nossas oligarquias tradicionais. Não é de estranhar, portanto, a enorme aposta popular depositada na retomada da agenda democrática pós-1985. Assim como o cartismo na Inglaterra no século XIX, a mobilização constituinte no Brasil, alargando os direitos políticos e sociais em 1988, colocava na força da cidadania a condição suficiente para uma democratização substantiva do Estado e, a partir dele, da sociedade. O nosso Leviatã cumpriria a sua parte, mas enquanto Estado capitalista, claro.
A esquerda expressa na frente popular, hegemonizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), viu com bons olhos a simpatia das agências multilaterais de desenvolvimento para com as experiências locais de democracia participativa, entendendo a continuidade do OP em Porto Alegre, após a derrota eleitoral de 2004, como uma vitória da resistência das classes populares. Da mesma forma, também no âmbito federal, com a chegada de Lula ao poder em 2003, o embarque no discurso da gestão da pobreza, trazido por estas mesmas agências (New Public Management – NPM (Nova Gestão Pública: lembrar Reagan & Thatcher), Poverty Reduction Strategic Papers, Metas do Milênio, etc.) simulava o pacto político possível: presidencialismo de coalizão, desmobilização dos movimentos sociais em favor de mobilizações cívicas (conferências), recrutamento da elite sindical, fortalecimento dos grandes grupos econômicos nacionais via financiamento público e subsídios, políticas distributivas e afirmativas na base da pirâmide social. Embora com ênfase nacional-popular e sucesso na redução da pobreza, não se alterava radicalmente o modelo que vinha da Era Collor-FHC: descentralização, terceirização, focalização. Enquanto durou o boom das commodities, parecia que o país crescia por força do investimento social. Hoje, voltamos a um certo limbo. O Brasil mudou, mas em meio a centenas de obras em andamento, grande parte gerando novos problemas sociais e ambientais, não se configurou um projeto político claro. Diz uma das leis da anti-administração que quando os objetivos não são claros, os esforços devem ser redobrados. O governador Tarso Genro propõe a “revalorização dos conselhos e conferências nacionais”[6]. Mais do mesmo, mais interação Estado-sociedade e menos poder popular real.
Em Porto Alegre, os 3 governos Fo-Fo (Fogaça-Fortunati) trataram logo de sepultar a agenda histórica de participação que vinha do PT. Para isso criaram um conceito, a Governança Solidária Local (GSL), que cumpriria a função de biombo de transição. Primeiro foram drasticamente reduzidos os recursos para o OP e esvaziados os já meio que secundarizados conselhos setoriais, incluindo uma limpeza progressiva em alguns conselhos: Conselho do OP (COP); Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) e Conselho Municipal dos Direiros da Criança e do Adolescente (CMDCA). No OP e no CMDCA, a limpeza consistiu em fazer eleger conselheiros simpáticos ao governo e esvaziar os fóruns regionais, reconstruindo paulatinamente a oligarquia comunitária existente antes do OP e conferindo-lhe maiores poderes, contratos de terceirização de serviços e cargos de confiança no governo e fora dele. No CMDUA, além disso, como se tratava de validar os projetos que vinham do setor privado, foi constituída uma espécie de tropa de choque para aprovar tudo que fosse de interesse dos parceiros do governo sem maiores discussões. O espaço efetivo de construção das políticas setoriais, se já não era exatamente dentro dos conselhos, não obstante a existência de conferências e congressos, foi transferido para o outro lado do biombo. Uma zona pantanosa foi estabelecida pela GSL, que permitiu, por exemplo que todas as obras de mobilidade incluídas na matriz de responsabilidade da Copa 2014 em Porto Alegre ficassem a cargo do setor privado diretamente interessado, via Centro das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, que “doou” os projetos. A GSL é definida pelo governo como uma ação, não como um organismo. Apesar de ter orçamento público definido, não precisaria prestar contas, segundo o governo.
Para compensar a retirada de recursos do OP e o abandono da construção de habitações de interesse social com recursos próprios (que era a principal prioridade do OP), bem como das demandas de regularização fundiária, a prefeitura atuou em duas frentes. De um lado, incentivando os setores privados, via Corporate Social Responsibility (Responsabilidade Social Corporativa), a aumentarem suas doações (com isenção fiscal) para o Funcriança (Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) e fazendo com que entidades comunitárias interessadas passassem a buscar diretamente nas fundações privadas as parcerias para os seus projetos. De outro, aproveitando a avalanche de recursos disponíveis através do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), do governo federal, e transferindo para a iniciativa privada a construção de novas unidades, reservando-se o papel de administradora de cadastros de interessados, o que conserva o governo municipal no papel de atravessador político-institucional.
Retomar uma agenda de democratização da gestão democrática hoje em Porto Alegre passa por enfrentar no mínimo 3 desafios, além de desarmar o esquema caça-votos montado pelo Secretário de Governança:
- O primeiro desafio é o da autonomia, que implica romper com o monopólio político-administrativo da participação detido pelo governo em praticamente todas as experiências até aqui. Significa deixar de acreditar que a cidadania vale por si, ou que existe algum poder encarnado na pessoa que ocupa alguma posição de representação em espaços participativos. A famosa democracia grega não seria nada sem a infantaria hoplita de cidadãos armados. Sem a reconstrução de movimentos populares urbanos efetivamente enraizados em lutas sociais, quaisquer movimentos hidropônicos serão facilmente subordinados ou esvaziados.
- Segundo, vem o desafio operativo, o modo de exercício do poder. Nas duas últimas décadas enaraizou-se na gestão pública o NPM (Nova Gestão Pública), que nas cidades prolifera através da praga do Planejamento Estratégico. A cidade e os espaços públicos são convertidos num conjunto de ativos, cuja única função é contribuir para a valorização do capital de incorporadoras imobiliárias, construtoras, grandes redes de comércio e permissionários de serviços públicos uma outra lógica de gestão democrática. No lado da organização social, viceja o irmão siamês do NPM, o mito da CSR (Responsabilidade Social Corporativa). Diretamente (licitações) ou indiretamente (isenções fiscais), são repassados recursos para fundações ligadas às grandes corporações empresariais, as quais condicionam a redistribuição de recursos para organizações comunitárias e ONGs a ações de funcionalização da pobreza sob a lógica do empreendedorismo, como se cada pessoa devesse ser transformada numa empresa bípede. Como operar recursos públicos retomando a lógica da emancipação social nesse contexto de mercantilização acelerada dos processos de reprodução social das classes trabalhadoras? Além do fortalecimento das fontes de poder popular, primeiro desafio, é preciso recuperar e desenvolver práticas de ação direta, organização, comunicação, planejamento e gestão coletiva independentes do Estado e dos respectivos governos. Os projetos das classes populares precisam ser construídos antes da participação em mesas de negociação. A socialização efetiva de recursos públicos e privados só acontece via relações de força, como mostrou o Movimento pelo Passe Livre.
- Terceiro, o desafio do pacto básico de poder. Nada do anterior terá a menor chance de sucesso, entretanto, se não estiver vinculado ao entendimento da democracia não apenas como um regime político, mas sobretudo como um forma de Estado. Um outro estado só é possível com um outro projeto de poder, com o fim do Estado atual, com o fim da democracia direta do capital na cidade e no país. Se as nossas vidas são organizadas da manhã à noite pelo valor, ou seja, pelo poder do dinheiro, pela força abstrata do capital, não vão ser reformas no regime político de interação participativa que vão mudar isso.
Assim sendo, não será o velho ideário da Reforma Urbana com Gestão Democrática que trará de volta a luta política real no contexto do capitalismo de crise. Uma das nossas tarefas, com certeza, é assumir provisoriamente o papel de Antígona[7] e garantir à Democracia Participativa Cidadanista e à Reforma Urbana um funeral digno. Reduzida a um lobby congressual nos anos 90, a Reforma Urbana é o retrato de um movimento social hidropônico, cujo contato da letra da lei com o poder das grandes corporações produziu o que estamos vendo: a conversão dos intrumentos pensados para a inclusão em instrumentos de exclusão. E o que é pior, exclusão participativa. É o caso das remoções em massa alavancadas pelas obras da Copa, com a precificação da exclusão (54 mil reais, o valor de uma unidade do MCMV). O que dizer do solo criado, das áreas especiais de interesse social, do IPTU progressivo sobre vazios urbanos?
Porto Alegre tem 50 mil imóveis residenciais vazios, o que é perfeitamente funcional para as necessidades de acumulação de capital nos tempos que correm. Quantos mais teremos daqui 10 anos?
[1] “La politique est l’art d’empêcher les gens de se mêler de ce qui les regarde.” – Paul Valéry, Tel quel, Paris, Gallimard, 1943, p. 41.
[2] Jean-Luc Nancy, La ciudad a lo lejos, Buenos Aires, Manantial, 2013, p. 9 (Prefácio: La ciudad incivil).
[3] Vide: Arne Ruckert, Towards an Inclusive-Neoliberal Regime of Development: From the Washington to the Post-Washington Consensus, Ottawa, Carleton University, 2006 (Prepared for Delivery at the Canadian Political Science Association Conference York University, Toronto). Disponível online: http://www.cpsa-acsp.ca/papers-2006/Ruckert.pdf
[4] Augustín Cueva, El desarrollo del capitalismo en América Latina, México, Siglo XXI, 1977.
[5] Vide: Armando Boito Júnior, O sindicalismo de Estado no Brasil, São Paulo, Hucitec, 1991.
[6] Tarso Genro, Nova agenda para um novo ciclo, Blog rsurgente, 21/07/2013.
[7] Antígona é a personagem principal e o título de uma tragédia grega de Sófocles. Creonte, rei de Tebas, proíbe o sepultamento do irmão dela, Polinices. Antígona reage argumentando que as leis humanas não podem se opor às leis divinas. A violência da lei não está acima da força da vida.
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