Um exemplo de trocas assimétricas (post anterior) –
Por Javier Auyero:
(…)
No Dia das Crianças, Matilde e seus seguidores organizaram três atos em diferentes áreas de Vila Paraíso. Às dez da manhã, Matilde, Adolfo, Pedro e Paco, Mimí, Ingrid e Marcela chegam à UB de Cholo, na Quinta Rua.
Adolfo veio na camioneta, junto com Oreja – membro do grupo conhecido como “A Banda de Matilde” – e Patón. Patón é funcionário público na Subsecretaria de Obras Públicas. Usualmente dirige o caminhão que leva água potável para a Quinta Rua. Assim que estacionam a camioneta, Patón e Oreja descarregam sacos de leite, sacolas com brinquedos e duas bicicletas. O leite pertence ao Plano Vida, o maior dos programas de distribuição de alimentos que desenvolve o governo provincial. Não se supõe que esse leite seja usado para propósitos partidários; pelo menos isso é o que a esposa do governador repete semanalmente. Contudo, preparar o chocolate quente para as crianças da vila em “seu dia” é uma “boa causa”, suficientemente nobre para justificar o desvio de recursos estatais para uso político partidário.
A mesma utilização “privada” dos recursos públicos se aplica à camioneta. Na parte traseira está escrito: “Unidade adquirida com o que você paga. A serviço do povo”. Um jornal local denunciou recentemente que essa mesma camioneta foi utilizada por um grupo de jovens para fazer campanha política contra um vereador do Partido Radical. Depois de descrever o que denominou “atividades duvidosas” desse grupo de jovens, a nota jornalística terminava com uma pergunta retórica: “A serviço de qual povo?”. O grupo também é encarregado da propaganda política: pintam paredes e penduram faixas. Pedro – um dos filhos de Matilde – é quem dirige e paga os integrantes. Um dos membros da banda me disse: “Ele faz o trabalho sujo”. No dia anterior ao Dia das Crianças, escutei Matilde dizer para Pedro: “Nessa parede, onde está pintado o nome de Pedele […], quero meu nome aí”. Nessa mesma noite, Pedro levou “os rapazes de Matilde” até essa parede, com a mesma camioneta, e eles pintaram o cartaz que diz: “Sempre com Rolo. A banda de Matilde”.
Pedro também está encarregado da distribuição de vinho, cigarros de tabaco e/ou maconha entre os membros da banda; prepara o churrasco depois dos atos públicos aos quais a banda assiste e depois de cada uma das pichações noturnas.
Todos os meses, Cholo recebe leite em pó do Plano Materno-Infantil para distribuir entre as mulheres grávidas e crianças de um a cinco anos que moram em “sua” área. Também obtém de Matilde, uma vez por mês, pacotes de comida (macarrão, arroz, erva-mate, polenta etc.) e medicamentos (calmantes, aspirinas, antibióticos etc.). Recebe sacolas extras de comida cada vez que há um ato público do partido. As duas bicicletas que hoje trouxe Matilde são os prêmios de uma rifa que ela e Cholo organizaram na tarde desse dia entre as crianças que assistiram ao “seu Dia das Crianças”. Matilde deu a Cholo as bicicletas e outros brinquedos (bolas, bonecas etc.) para que fossem rifados entre as crianças da Quinta Rua.
Na frente da UB de Cholo, os palhaços trazidos por Matilde fazem suas atuações em um precário cenário, ornamentado por coloridos balões estampados com a cara do prefeito e duas frases, uma atribuída a Juan Perón (“As únicas privilegiadas são as crianças”), e outra que pertence a Rolo Fontana (“Tudo pela felicidade de uma criança”). O Dia das Crianças é uma boa ocasião para passar por alto dessas insignificantes confusões entre a política partidária e as atividades do Estado. Vale tudo pela felicidade de uma criança: estampar o rosto nos balões com que elas brincam, desviar recursos dos programas estatais, misturar a política partidária com as responsabilidades oficiais.
Mais tarde, nesse mesmo cenário, Matilde oferecerá um curto, mas muito significativo, discurso. Começa dizendo que o prefeito Rolo não pôde vir para comemorar com eles, “mas vocês o veem todos os dias, ou seja, não é um grande problema”. Para comemorar o Dia das Crianças, ela sustenta que “as pessoas devem estar junto com suas famílias […]. Nós temos um costume: trabalhamos como uma família, para a família e com a família. Como sempre digo, o povo, o governo e as instituições intermediárias […] juntos […] vamos conseguir grandes coisas”.
Mais tarde, no limite sul de Vila Paraíso, Matilde e toda a sua família irão se encontrar com o prefeito em outra comemoração do Dia das Crianças, organizada por Juana Medina, militante da UB Chacho Peñaloza. Pedele (vereador peronista de um município vizinho) é quem financia a organização desse ato (pagando pelas bicicletas para as rifas e pela banda musical Los Pasteles Verdes, que toca depois do discurso do prefeito). Com os retratos de Juan e Eva Perón atrás, o prefeito faz um reconhecimento público a Pedele, como o organizador do ato, e diz:
[Esta] festa […] que é dar um sorriso, dar amor a todas as crianças, porque estamos repetindo o que disse uma grande mulher argentina que todos levamos dentro dos nossos corações, Eva Perón, quando disse que em nossa pátria as únicas privilegiadas são as crianças […]. Para isso estamos trabalhando em Cóspito, para dar mais ajuda, mais bem-estar ao povo, e ainda mais neste momento, em que o povo está atravessando uma situação um pouco difícil, mas aqui está o governo justicialista, com seus governantes […], trabalhando para dar mais ajuda e mais felicidade ao povo […]. Isso é o que tem que fazer o peronismo, isso é o que tem que fazer em favor da gente humilde, dos trabalhadores, dos idosos, das crianças, fazer simplesmente o que fez Juan Perón e o que fez Eva Perón.
Às duas da tarde voltamos para a casa de Matilde, depois de um extenuante Dia das Crianças que incluiu palhaços, números musicais, rifas, discursos e chocolate quente. Exatamente quando ia me retirar, Matilde diz: “Percebeu? Depois de tudo o que você viu […] os votinhos vêm, não preciso ir buscá-los […], os votos vêm sozinhos”. Ela conseguiu sua cadeira de vereadora nas últimas eleições de 1995, nas quais o PJ obteve 60% dos votos em Vila Paraíso. Uma porcentagem mais do que considerável, levando-se em conta que o PJ obteve 50,6% na cidade de Cóspito (eleições para prefeito).
Matilde é o que a literatura sobre clientelismo político denominaria mediador político, faz a intermediação entre um patrão – neste caso, Rolo Fontana, o prefeito da cidade de Cóspito – e alguns de seus seguidores. Capitulero, no Peru das décadas de 1930 e 40 (Stein, 1980); cabo eleitoral, no Brasil dos anos 1930 em diante (Conniff, 1981; Mouzelis, 1985; Roniger, 1990; ver também Gay, 1994); gestor, padrinho político ou cacique no México em vários momentos de sua história moderna (Carlos e Anderson, 1991; Ugalde, 1973; Cornelius, 1973; Roniger, 1990); capitães de vizinhança, nas máquinas políticas de Chicago e de outras grandes cidades norte-americanas (Kornblum, 1974; Guterbock, 1980; Katznelson, 1981; ver também Knoke, 1990); caudilho de bairro, nos partidos radical e conservador na Argentina dos anos 1920 e 30 (Rock, 1975, 1972; Walter, 1985; Bitran e Schneider, 1991); referente ou puntero peronista, na Argentina dos anos 1990. Apesar de haver significativas diferenças entre eles, sua função é essencialmente a mesma: operam como mediadores, como “go-betweens”. Fazem a intermediação entre seus caudilhos, chefes políticos, ward bosses e os clientes. Os referentes, que são especialistas em manipulação de informação e de pessoas, usufruem do poder posicional que acompanha sua função mediadora e canalizam recursos do patrão para os clientes, e votos e apoio dos clientes para a pessoa que controla os recursos materiais e simbólicos.
(…)
Leia o artigo completo na Revista Brasileira de Ciência Política:
A rede de solução de problemas do peronismo
.
.
*
Comments are closed.