Por Sérgio G. Baierle:
Discuto aqui a crise do sujeito nos movimentos populares urbanos e seus territórios – favelas e vilas populares sobretudo –, à luz da mutação de suas condições de reprodução social, as quais tinham por base o que venho atualmente chamando de paradigma do otimismo cruel (as contradições do desejo de modernidade).
1. Crise do sujeito.
Este texto tem por objetivo discutir a crise do sujeito nos movimentos populares urbanos e seus territórios – favelas e vilas populares sobretudo –, à luz da mutação de suas condições de reprodução social, as quais tinham por base o que, na falta de um nome mais adequado, atualmente chamo de paradigma do otimismo cruel[i] (conceito que expressa a aposta num projeto de melhoria contínua da vida, cuja ilusão de chegar lá curto-circuita as alternativas a ele). Ou, para colocar as coisas num terreno talvez mais dócil e familiar: o paradigma da “longa marcha da democracia brasileira”. O ir e vir da soberania popular brasileira no século XX, rumo a uma qualidade democrática progressivamente melhorada, tal como apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos[ii]. Trata-se de um ideário onde a igualdade jurídica, o sufrágio universal e o progressivo acesso aos direitos de cidadania, sobretudo à educação, seriam condição suficiente para um processo dilatório no tempo da construção de uma sociedade com melhores níveis de participação e igualdade sociais, dispensando fraturas radicais e/ou violentas da sociedade em nome da abreviatura do acesso a essa igualdade. O desenvolvimento capitalista é aí dado como o mar natural onde as contradições dessa marcha evoluiriam até um ótimo sempre inalcançável, porém cada vez mais próximo. O marco legal da Reforma Urbana no Brasil, a partir do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e da Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida (Leis 11.977/09 e 12.424/11), entre outras, figura nesse ideário da longa marcha como uma luva, como veremos, assim como programas governamentais locais como os orçamentos participativos (OPs) ou o Favela-Bairro, adotado no Rio. Por várias razões, que apresentaremos a seguir, o paradigma da melhoria contínua vem metamorfoseando-se num novo paradigma, ainda não perfeitamente delineado, ao qual tenho chamado de exclusão participativa (a exclusão social promovida com o consentimento ativo dos excluídos, para fins legais e políticos), conceito sobre o qual trabalharei mais adiante aqui.
O presente texto tem por base dois pressupostos: (a) o Estado Moderno atual, no qual a exceção é cada vez mais a regra, oferece margens progressivamente menores para a existência do político enquanto espaço aberto. Na medida em que a sociedade é reduzida à sociedade civil e esta à governamentalidade cívica[iii], o exercício da cidadania diante de um Estado que supostamente seria o funcionário do cidadão soberano se revela pura ficção, pois numa sociedade burguesa todos os cidadãos são burgueses, ainda que queiram eventualmente colocarem-se contra essa condição (muito ao contrário, a autonomia do Estado é limitada às necessidades de valorização do capital e as variações possíveis de regimes políticos no âmbito desse Estado são incapazes de superar sua natureza “quântica” – simultaneamente autoridade e potestade – como mostra Agamben[iv]); e, ( b) o capitalismo não é um mar natural na história humana e tampouco é o mesmo ao longo do tempo, tendo princípio, meio e fim. O Brasil de hoje, por exemplo, não tem condições de reproduzir a socialdemocracia da Europa do pós-guerra. Alias, a própria Europa atual, diante do capitalismo de crise, trata de desconstruir o modelo que acabou servindo de paradigma da modernidade. Tal como os socialismos de caserna do leste europeu, agora chegou a hora do outro lado do muro desmoronar e parece que não há mais para onde ir.
Não é de estranhar, portanto, que a receita brasileira dos governos Lula-Dilma faça tanto sucesso interna e externamente. Combinando crescimento a qualquer preço com políticas sociais e de renda, além de crédito para as famílias e trabalhadores mais pobres, se fortalece o consumo de massas (avanço das classes C e D, superando A e B) e se criam condições financeiras quase ideais para a constituição e fortalecimento do capital monopolista associado no país. Ocorre, entretanto, ao contrário do que supunha Hilferding[v] e talvez nossos aprendizes de feiticeiros no Ministério da Fazenda e no BNDES, a financeirização monopolista não é já uma pré-socialização da economia em articulação com o Estado. A crise de 1929 se encarregou de liquidar com a tese do capitalismo organizado imune às crises de Hilferding[vi]. Já no Brasil, o fim do boom das commodities e o processo de desindustrialização em curso desenham um cenário nada distante de ruptura do pacto neodesenvolvimentista tupiniquim. Como uma saída que ainda sobra ao governo é turbinar financeiramente o desenvolvimentismo, resta ver até onde essa corda estica pelo lado da fluída frente política de suporte ao pacto de poder atual[vii]. Neste contexto, o colapso do planejamento urbano nas grandes cidades e a flagrante obsolescência do ideário da Reforma Urbana, em meio aos financiamentos bilionários para as obras da Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, certamente não ocorre por acaso.
Apesar de não ter se consolidado ainda de forma efetivamente hegemônica um novo paradigma para os movimentos populares urbanos, já são bastante visíveis algumas condições que já integram o novo modelo emergente, a exclusão participativa: a substituição de conteúdo por reconhecimento. Num contexto em que à gestão do Estado, diante da crise da sociedade do valor, não cabe outra coisa que não a administração de um progressivo estado de exceção, o jogo democrático se revela incapaz de ir além da homeopática adoção de medidas compensatórias. Os resultados reais em termos de redução da pobreza, por exemplo, muito pouco alteram a curva de participação da renda do trabalho no PIB. As transferências condicionadas de dinheiro, como é o caso do bolsa família, certamente precisam ser prolongadas e adquirir um caráter vitalício para grande parte dos beneficiários, simplesmente porque a produção de uma crescente massa de pessoas não rentáveis em termos de agregação real de valor é inerente ao capitalismo, sobretudo em sua fase atual em que a automatização avança da substituição do trabalho manual para a substituição também de parcelas do trabalho intelectual, além da óbvia consequência de que os setores defasados tecnologicamente tentarão compensar sua falta de competitividade através de todos os meios possíveis, da intensificação da exploração – o famoso “mais com menos” – à acumulação por despossessão, que de modo algum isenta os territórios, meios de vida e culturas das classes subalternas[viii].
Calibrar os níveis de tolerabilidade social dos índices de desemprego e de precarização do trabalho, desenvolver programas sistemáticos de reciclagem de mão-de-obra e auto-empreendedorismo, bem como promover um ajuste fino nas técnicas de controle social no meio urbano, além de precificar os custos da coesão social assim produzida, são atividades que hoje integram o próspero Terceiro Setor. Governos, fundações empresarias, ONGs e organizações comunitárias de base (OCBs) tendem a se articular e a se ressocializarem através de uma nova linguagem, estabelecem câmaras de compensação (clearings) para o seu financiamento e passam a substituir ou “possuir” os movimentos sociais. Entram aí as metodologias e os espaços participativos para a produção da boa governança e o incremento do capital social local, que neste sentido nada mais significam do que a busca obsessiva do consentimento ativo das classes subalternas em relação a sua normalização e neutralização econômica, social e política[ix].
2. A erosão do paradigma do otimismo cruel e de seu ideário.
Não sem razão, na história da dominação social no Brasil, sobressai nas visões à esquerda um elemento explicativo que tanto revela quanto esconde: o autoritarismo atávico das elites dominantes. Por exemplo, através deste elemento, é fácil explicar 388 anos de escravidão, ou a república dos coronéis e o poder moderador dos militares, que permanece até hoje. Mas já o populismo nacional-desenvolvimentista da Era Vargas ou a ditadura positivista em Porto Alegre (1897-1937), ou mesmo o reinado de D. Pedro II, geram controvérsias e ardorosos defensores. Parece que o autoritarismo é ruim quando representa a inserção atrasada do país no desenvolvimento capitalista, mas é bom quando subordina as oligarquias regionais às necessidades da modernização, ainda que o povo a tudo assista, bestializado. Veja-se, por exemplo, a crítica de Caio Prado Jr. à educação na casa-grande da era colonial:
“O sistema de vida a que dá lugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baixo teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais irregulares e desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal disfarçada por uma hipócrita submissão, puramente formal, ao pai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola de vício e desregramento, apanhando a criança desde o berço, que de formação moral. A família perde aí inteiramente, ou quase, as suas virtudes; e em vez de ser o que lhe concede razão moral básica de existência e que é de disciplinadora da vida sexual dos indivíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para o mais desenfreado sexualismo.”[x]
O sistema colonial aparece sob um viés moral, prejudicial a uma ética com base no trabalho com fundamento do desenvolvimento (capitalista, claro). Todas as resistências a este desenvolvimento figuram sob o signo do atraso, da falta de virtude cívica, quase que sugerindo a necessidade de uma força regeneradora superior, cargo ao qual se candidatariam no momento oportuno as forças armadas, na esteira do marco legal deixado pelo poder moderador do Imperador na segunda metade do século XIX.
É interessante observar que as primeiras opiniões sobre as favelas reproduzem visões relativamente próximas às de Caio Prado Jr. sobre o colonialismo escravocrata. Como mostra Alba Zaluar[xi], também para as favelas são propostas soluções externas capazes de forçar mudanças nos hábitos dos seus moradores, de modo a torná-los mais dispostos para o trabalho e a existência numa sociedade de mercado, onde a vida não pode ser um carnaval. De certa forma, assim como o carnaval foi pasteurizado durante a Era Vargas, também as favelas e vilas populares foram “catequisadas” ao longo do tempo, a medida em que seus moradores, uma vez alfabetizados, adquiriam peso eleitoral. Entende-se aqui por favelas os aglomerados habitacionais caracterizados por moradias precárias, carentes total ou parcialmente de infraestruturas urbanas e em situação de irregularidade fundiária. Já nas vilas populares a maior parte das moradias não são precárias, no mínimo as infraestruturas básicas estão presentes (água, eletricidade, fossas, acessos viários, correio e coleta de lixo), embora persista a situação de irregularidade fundiária. Se num primeiro momento do projeto populista as favelas não eram reconhecidas como locais de trabalhadores pelos ministros do trabalho varguistas, a partir dos anos 40, com a inauguração de conjuntos habitacionais pelos IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões, anos 30) e pela Fundação da Casa Popular (criada em 1946), é estimulada a organização comunitária por local de moradia, prática progressivamente estendida para as vilas populares e favelas através das federações estaduais de associações de moradores, ou sociedades de amigos de bairro. Replicava-se para o mundo da moradia popular o modelo do sindicalismo de Estado das empresas privadas e públicas. O padrão de cidadania regulada[xii], que estabelecia o acesso aos direitos trabalhistas a partir de hierarquias de inclusão no mundo do emprego formal, vai sofrendo uma lenta mutação ao longo dos anos, de modo a reconhecer a informalidade do trabalho e da moradia através de um sistema de apropriação paternalista das reivindicações dos trabalhadores e moradores informais.
Com maior ou menor grau de autonomia organizativa, associações de moradores (AMs) e/ou sociedades de amigos de bairro (SABs), constituídas como pessoas jurídicas (registro no CNPJ), passam a figurar como o principal espaço de organização comunitária, tanto para fins de lazer quanto de reivindicação. Embora não exista nenhuma lei nacional que diga que tais entidades jurídicas detêm o monopólio de representação comunitária, é comum a aceitação da palavra do presidente da entidade como expressão da vontade coletiva local. Em Porto Alegre, por exemplo, no recente caso da remoção de famílias da Vila Dique para abrir espaço à expansão da pista do Aeroporto Salgado Filho, houve uma ação na justiça movida pelas famílias removidas questionando o tamanho das novas unidades construídas para reassentá-los (ao redor de 40 m2). Como a prefeitura municipal dispunha de um documento firmado pela presidente da AM no qual, entre outras coisas, mencionava-se a metragem das novas unidades, os moradores perderam a causa, independente do assunto não ter sido suficientemente discutido com as famílias afetadas anteriormente à remoção. Este consenso jurídico expressa uma jurisprudência construída ao longo de décadas, na qual o coletivo de moradores chamado de comunidade é expropriado de sua soberania coletiva e submetido a um sujeito jurídico chamado AM ou SAB. Comunidades na verdade não existem, o que existem são organizações comunitárias cuja pretensão de monopólio de representação local permite aos seus dirigentes um papel privilegiado na mediação com instituições públicas e privadas. Obviamente que, para receberem recursos públicos, estas organizações precisam estar em situação regular e serem reconhecidadas como tal pelos órgãos de governo e seus programas assistenciais, o que objetivamente reproduz o padrão do sindicalismo de Estado brasileiro[xiii]. Ficava assim padronizada a relação Estado – Vilas e Favelas, bem como se definia o que é e para que serve um movimento comunitário: a defesa do acesso à cidade enquanto infraestruturas e serviços tendo por base a mediação político-institucional junto ao Estado (papel de presidentes de AMs e SABs, ONGs, igrejas, partidos, vereadores, agentes de governo e mesmo do Ministério Público). Se a redução da representação a uma função de síndico de vila já era complicada desde a origem, sua profissionalização e empresariamento complicam ainda mais as coisas.
Num período mais recente, posteriormente à adesão de nossas elites ao credo da democracia liberal (segunda metade dos anos 80), a figura do Leviatã redentor evoluiu do poder moderador dos militares e caudilhos modernizadores para o bonapartismo. Como mostra Losurdo[xiv], a tendência mundial atual das democracias liberais se caracteriza pela centralização do poder no Executivo, a personalização do poder político e a perda de influência real dos partidos políticos no processo decisório, caracterizando-se sobretudo pela neutralização do poder de voto das classes populares, num processo desemancipatório em que as massas urbanas voltam ou continuam a serem tratadas como uma multidão criança sempre dependente da babá Estado. Mas não nos antecipemos.
Por paradigma do otimismo cruel não estamos aqui nos referindo a algo como uma consciência de classe, mas sim a um padrão de urbanização repetitivo, reunindo na mesma chave permissividade e intolerância, transformando grande parte das classes subalternas nas grandes cidades brasileiras em cidadãos clandestinos de uma república simultaneamente oligárquica, populista e liberal, onde o código civil está acima dos direitos constitucionais. Áreas públicas urbanas ocupadas irregularmente, por exemplo, podem ser sublocadas e os eventuais locatários podem ser despejados pela justiça em caso de inadimplência, ainda que os locadores não tenham nenhum documento que comprove sua titularidade, a não ser o contrato de aluguel. A legislação atual garante o direito à moradia de ocupantes de áreas públicas até 250 m2 cuja ocupação tenha mais de 2 anos, obedecidas certas regras, porém cabe ao Estado, em seus diversos níveis, o reconhecimento e o respeito a esse direito. Hoje, entretanto, é consenso no âmbito jurídico a possibilidade de permuta da área ocupada e da moradia aí construída por outra, não importa onde, desde que a moradia em si não seja pior que a presente. Trata-se de uma cidadania nua, não ainda vida nua no sentido que lhe dá Agamben (op. cit.). Os direitos existem, bem como a codificação legal que os assegura, mas encontram-se ou podem ser colocados a qualquer momento en sursis, ao sabor de razões de Estado quaisquer, como a Copa Fifa 2014, por exemplo.
Sobrevivendo tanto na marra quanto na dependência de atravessadores institucionais, as favelas e vilas populares são o resultado de mais de um século de confrontos sociais e arranjos políticos que se situam mais no âmbito distributivo que da contestação à ordem dominante (luta pelo acesso a determinados conteúdos independente do seu modo de produção e gestão). A informalidade aqui não é exatamente uma forma de resistência, mas uma fórmula de convivência entre formalidade jurídica e reprodução social.
Num país em que um terço das unidades habitacionais encontra-se em situação de irregularidade fundiária (IBGE-Pnad, 2007), o que invariavelmente opera como escusa para desinvestimento, só uma cruel permissividade pode explicar a permanência no tempo de um paradigma como esse. A cidade informal funciona como uma espécie de mercado urbano secundário, copiando mimeticamente a cidade formal, compensando pela via da intensidade do trabalho a eventual baixa densidade de capital, através de uma rede de serviços mais baratos que os formais, como já indicavam os estudos de Francisco de Oliveira ainda no início dos anos 70[xv]. O mercado imobiliário não é apenas aí replicado. Não se trata de um arremedo, mas de uma “governança” que permite assegurar a prevalência da lógica da propriedade privada e da especulação imobiliária na lei ou na marra (via milícias controladas por grileiros, leis ad hoc e consensos institucionais transversais), explorando as “naturais” clivagens sociais entre as classes batalhadoras (economicamente resolvidos, recicláveis e não-rentáveis).
Uma perspectiva reformista como a pensada no início dos anos 60 e reensaiada após a redemocratização, culminando com o Estatuto da Cidade, não teria sido avessa ao capitalismo ao moderar o seu lado rentista. Teria sido muito menos custoso no médio e longo prazo terem sido desenvolvidas políticas públicas urbanas capazes de coibir a especulação imobiliária desenfreada e de assegurar áreas e programas adequados para a habitação de interesse social e para a preservação ambiental. Não foi o que aconteceu. E nem vai. Se nos anos 60 a Reforma Urbana foi inviabilizada pela ditadura militar, no novo milênio ela é apenas um simulacro de reforma, ressignificada pelo capitalismo de crise e a consequente democracia direta do capital. Isto não ocorre porque nossas elites são mais predatórias outras, ou porque a acumulação primitiva nunca foi interrompida (a accumulation by dispossession de Harvey), o que até pode ser verdade. Ao contrário do que afirma um certo senso comum, o capitalismo não é avesso à luta de classes. O capitalismo só pode se expandir a partir da integração das classes subalternas ao mundo do mercado. O primeiro ato das revoluções burguesas foi justamente a garantia das liberdades civis, ou seja, a formalização da separação entre trabalhador e meios e fins da produção e a institucionalização do mercado de trabalho (e, nessa esteira, através da luta de classes, configuração do mercado de consumo de massas). O duplo sentido da mercadoria (concreto e abstrato) só se consolida com a invenção do trabalhador moderno (trabalho e capital como os dois lados da abstração do valor).
Outras alternativas ao paradigma do otimismo cruel simplesmente não foram viáveis porque outros princípios possíveis ao repertório de ações do urbanismo subalterno não lograram adquirir a mesma força material junto às massas urbanas. Basta recordarmos o reduzido número de alternativas autogestionárias levadas adiante, ou a incrível resistência à idéia de propriedade coletiva por movimentos comunitários, ou mesmo à concessão do direito real de uso. Mesmo as propostas de regularização fundiária, geralmente bem-vindas (perspectivas de urbanização e valorização), enfrentam um sério problema para sua execução, que consiste na constante mudança nas listas de beneficiários em função de vendas da posse (a própria notícia de regularização gera valorização imobiliária que é imediatamente aproveitada por um número significativo de famílias).
É esse otimismo cruel que sistematicamente caracterizou o padrão brasileiro de urbanismo subalterno, não porque lhe faltasse uma verdadeira consciência de classe (a la Lukács[xvi]), ou porque o trabalho de educação popular de partidos e ONGs progressistas tenha sido insuficiente. Chega disso, não se trata de um problema de mentalidade ou de alguma idiotia coletiva. Trata-se, isto sim, de ausência de alternativas reais e tempestivas às formas de socialização proporcionadas pelo paradigma hegemônico. Num contexto em que o dinheiro (leia-se, o valor) organiza as relações sociais e onde a sobrevivência individual e familiar não existe fora dele, só resta apostar numa vida “correndo atrás da máquina”, ou talvez tentando desesperadamente escapar dela sem encontrar como. Não há como imaginar que alternativas possam se constituir apenas no âmbito da chamada cidadania, nas relações Estado – sociedade civil, como se fosse possível abstrair da sociedade burguesa enquanto cidadão, mas continuar a suar para obter dinheiro no mundo do mercado.
Não deu outra, o cidadanismo enquanto repertório de ações dissociado da luta real pela vida, para além do acesso à cidade, acabou derivando num movimento moralista de distinção entre bons e maus cidadãos (os que pagam pelos serviços e os que não pagam, os rentáveis e os criminalizáveis – incluindo hoje ambulantes, carroceiros, carrinheiros, moradores de rua, etc.). Como profeticamente previu Francisco de Oliveira (op. cit.), o mundo informal dos serviços sub-remunerados não duraria para sempre. Enquanto as classes subalternas continuam acorrentadas à luta pela vida em condições que controlam cada vez menos, não obstante sua chegada efetiva ao consumo de massas, as classes dirigentes também são cada vez mais dirigidas para a capitalização do setor de serviços e para a redefinição dos territórios do legal, do informal e do criminal. Nesse novo movimento, não apenas a pobreza é convertida em capital, como sua gestão engendra um novo lugar: o otimismo como campo de concentração. Cruel, muito cruel! E tendo por base o consentimento ativo do povo soberano. Bem-vindos ao paradigma da exclusão participativa.
3. Rousseau encontra Kafka: a soberania como exclusão participativa.
Estava tudo programado para dar certo. Depois de décadas e mais décadas de ocupações, conflitos e pressão pelo acesso à cidade, lugar do trabalho e a partir dele da reivindicação e institucionalização coletiva de direitos, chegaria o dia em que as classes subalternas morando em favelas e vilas populares entrariam na lei e seriam reconhecidas. Mas demorou tanto que quando a lei chegou foi preciso formar enormes filas de espera.
Em Porto Alegre, por exemplo, 54 mil pessoas se inscreveram no Programa Minha Casa, Minha Vida em 2010 (na faixa até 3 salários mínimos). Até agora, das duas ou três centenas de unidades entregues, muito poucas foram para os integrantes da fila. A prefeitura foi autorizada a furar a fila para dar prioridade a reassentamentos de famílias em áreas de risco e outras situações cujo grau de emergência é definido pelo próprio governo municipal. Na mesma cidade, estudo realizado pelo Pólis em 2004 apontava para a existência de um déficit de 35 mil moradias. O Censo IBGE, por sua vez, mostrou a existência de 48 mil unidades residenciais desocupadas em 2010. Habitação de interesse social continua sendo a principal demanda no OP há mais de 12 anos. Entre 2005 e 2011 foram apresentadas 219 demandas de habitação. Até o final de março de 2012 apenas 34 foram concluídas. Do total de demandas apresentadas no OP até hoje, existiam 1.074 não executadas até 2011. A elas devemos adicionar as 565 novas demandas incluídas para 2012, quase metade das quais sem sequer apresentar valor indicativo (uma afronta ao público), totalizando uma herança de mais de 1.500 demandas em atraso para o próximo governo, a julgar pela média de execução dos últimos anos (vide gráfico geral até 2011 e quadro das 5 principais prioridades abaixo), o equivalente a aproximadamente 6 anos de OP. O número de pessoas que continua participando no OP se mantém estável, ao redor de 15 mil pessoas ano (1% da população da cidade). Entre maio de 2011 e março de 2012 apenas uma única unidade habitacional demandada no OP foi construída: uma casa de passagem (tapume de 12 m2 sem energia elétrica nem água encanada ou equipamento sanitário). As obras de mobilidade previstas para a Copa de 2014 em Porto Alegre, junto com a ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho e a remoção de famílias situadas em áreas consideradas de risco, implicarão na necessidade de reassentamento de cerca de 10 mil famílias. 70% não sabe ainda sequer para onde vai. Vários protestos e revoltas têm ocorrido nas áreas a ser removidas e nos locais das novas unidades. A estes movimentos o prefeito chama de caranguejos, porque andariam para trás e não para o futuro. Os caranguejos, na verdade, andam para o lado. Anualmente agentes políticos da Prefeitura de Porto Alegre são convidados a ensinar outras cidades no mundo a fazer OP. O último evento ocorreu agora no início de abril de 2012, em Nova York. O governo de Porto Alegre se comprometeu a apoiar o desenvolvimento de um software de gerenciamento de OPs. O indicador de resultado do OP em Porto Alegre é o número de participantes. O OP de Porto Alegre é um “sucesso”!
Gráficos elaborados por Daniela Tolfo (Ong Cidade) com diagramação de Rosana Pozzobon.
Fonte dos dados: PMPA – http://www.portoalegre.rs.gov.br/op_prestacao/acomp.asp
E com o tempo, a cidadania já não era mais cidadania, mas um benefício. No lugar do sujeito de direitos, entrou o sujeito de crédito. Da cidadania regulada pulamos para a cidadania nua. Da promessa de fortalecimento da soberania popular através da democracia participativa chegamos à exclusão participativa, um espaço para negociação dos termos de rendição e de prazos até o enquadramento em novas modalidades de normalização social. Em Porto Alegre existem cerca de 9 mil carroceiros. Estimativas indicam que cada carroceiro obtém uma renda mensal ao redor de 2 salários mínimos. Uma lei aprovada na Câmara Municipal determina que as carroças puxadas por cavalos e também os carrinhos puxados por tração humana não fazem parte do século XXI, devendo ser proibidos num prazo que ora se busca reduzir para antes da Copa de 2014. Aos carroceiros é oferecida a oportunidade de participar de cursos profissionalizantes. Na área onde hoje se encontra o maior shopping de Porto Alegre, o Barra Shopping Sul, viviam centenas de famílias que foram removidas, pois a área era então considerada de risco (alagamentos). A prefeitura apresentou a construção do shopping como uma oportunidade de trabalho paras as “comunidades”. O shopping doou um prédio a uma Ong local para o desenvolvimento de cursos profissionalizantes. Cerca de 500 pessoas teriam sido treinadas, menos de 5% haviam sido efetivados como auxiliares de serviços gerais quando da abertura do shopping em 2008. Muitos carroceiros têm mais de 50 anos, sendo que talvez a maioria vive da reciclagem de lixo e mora na região das ilhas, considerada área de preservação permanente. Um plano de manejo está em discussão há quase uma década. A melhor forma de preservação, na visão de agentes do mercado imobiliário seria transformar as ilhas num paraíso de turismo e lazer, mantendo as mansões que já existem na região e removendo as vilas populares para áreas “não alagáveis”.
Os principais candidatos a prefeito em Porto Alegre nas eleições de 2012 são otimistas, todos se consideram a melhor escolha para transformar a capital gaúcha em cidade global. Estão sendo anunciados para os próximos anos investimentos públicos equivalentes a mais de 30 vezes a média anual investida pelo poder público municipal (financiamendos federais via PAC – Programa de Aceleração do Crescimento) . Nenhum destes mais de 7 bilhões de reais previstos se destina ao OP.
Porto Alegre sediou em 2012 o encontro internacional do Observatório Internacional da Democracia Participativa.
TEXTO APRESENTADO NO ENCONTRO DO ETTERN/UFRJ – VASSOURAS-RJ – ABRIL 2012
[i] Conceito adaptado a partir da definição de Lauren Berlant: “A relation of cruel optimism exists when something you desire is actually an obstacle to your flourishing. It might involve food, or a kind of love; it might be a fantasy of the good life, or a political Project. (…) They become cruel only when the object that draws your attachment actively impedes the aim that brought you to it initially.” In: Lauren Berlant, Cruel optimism, Durham and London, Duke University Press, 2011.
[ii] Vide Wanderley Guilherme dos Santos, O Paradoxo de Rousseau, uma interpretação democrática da vontade geral, Rio, Rocco, 2007.
[iii] Para o conceito de governamentalidade cívica, vide: Ananya Roy, “Civic governmentality: the politics of inclusion in Beirut and Mumbai”, Antipode, vol. 41, no 1, 2009.
[iv] Vide Giorgio Agamben, Homo sacer: sovereign power and bare life, Stanford, Stanford University Press, 1998.
[v] Vide Rudolf Hilferding, Finance Capital. A Study of the Latest Phase of Capitalist Development. London, Routledge & Kegan Paul, 1981 (original em alemão publicado em 1910). Disponível online: http://www.marxists.org/archive/hilferding/1910/finkap/index.htm
[vi] Vide Robert Kurz, “Não há Leviatã que vos salve”, EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 8, 07/2011, disponível online: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz396.htm
[vii] Sobre a diferença entre simples frente e aliança efetiva, vide Armando Boito Jr., A política neodesenvolvimentista e as classes populares, disponível online (acesso em 03/-3/2012): http://www.viomundo.com.br/
[viii] Para o conceito de acumulação por despossessão vide David Harvey, New York, The New Imperialism, Oxford University Press, 2003.
[ix] Para os conceitos de governança e capital social, vide, respectivamente: (a) Boaventura de Souza Santos, “A crítica da governação neoliberal: o Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna”, Revista Crítica de Ciências Sociais, no 72, outubro 2005, pp. 7-44 (a primeira parte do texto apenas); e, Ben Fine, “Social capital: the World Bank’s Fungible Friend”, Journal of Agrarian Change, vol. 3, no 4, pp. 586-603.
[x] Caio Prado Jr., “Vida Social e Política”. In: Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo, Brasiliense, 1986 (19ª ed.), pp. 351-352.
[xi] Alba Zaluar e Marcos Alvito, Um século de favela, Rio, Editora FGV, 2004.
[xii] Vide, Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira, Rio de Janeiro, Ed. Campos, 1979.
[xiii] Para o conceito de sindicalismo de Estado, vide: Armando Boito Jr., O Sindicalismo de Estado no Brasil. Uma análise crítica da estrutura sindical, São Paulo, Unicamp/Hucitec, 1991.
[xiv] Domenico Losurdo, Democracia ou bonapartismo, São Paulo, Unesp, 2004.
[xv] Vide: Francisco de Oliveira, Crítica à Razão Dualista, São Paulo, Boitempo, 2003 (1a versão, como ensaio, data de 1972).
[xvi] Vide, a propósito, excelente discussão sobre consciência de classe adjudicada em Lukács: Norbert Trenkle, “Lubies métaphysiques de la lutte des classes” [Versão para o francês por Sînziana], Exit, no 29, 2005 (disponível online: http://sd-1.archive-host.com/membres/up/4519779941507678/N_Trenkle_-_Lubies_metaphysiques_de_la_lutte_des_classes.pdf)
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