O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 2

Por Giovanni Alves:

[trecho]

A barbárie social na perspectiva de larga temporalidade histórica tende a corroer, no plano da consciência contingente, aquilo que Lev Vygostki denominou “funções psicológicas superiores especificamente humanas”, isto é, a capacidade de planejamento, memória voluntária, imaginação etc. Estes processos mentais construídos no decorrer da evolução histórico-cultural da humanidade são considerados sofisticados e “superiores”, porque referem-se a mecanismos intencionais, ações conscientemente controladas, processos voluntários que dão aos indivíduos a possibilidade de independência em relação às caracteristicas do momento e espaço presente. Na verdade, o fenômeno inédito do estranhamento em sua dimensão planetária como ocorre na nova temporalidade histórica do capitalismo global tende a intervir, a longo prazo, no proceso de mediação que caracteriza a relação do homem com o mundo, com si mesmo e com os outros homens. Deste modo, na ordem do capital, o homem não está apenas alienado do instrumento, que tem a função de regular as ações sobre os objetos, mas está à mercê da manipulação do signo, que regula as ações sobre o psiquismo das pessoas (por exemplo, os valores-fetiche são expressão suprema do signo estranhado que se impõem, no plano subliminar, sobre o psiquismo das pessoas). É o que se verifica, por exemplo, no capitalismo histórico em sua etapa hipertardia, o capitalismo global, quando o estranhamento assumiu dimensões ampliadas.

Portanto, a “ansiedade perante o futuro”, expressão utilizada por uma trabalhadora precária portuguesa de 25 anos em Precários Inflexíveis, para exprimir o sentimento de precariedade, pode ser considerada sintoma da corrosão da atividade vital humano-genérica na medida em que apenas o homem possui a percepção do tempo-futuro. O animal está imerso na temporalidade vazia dada pelo círculo biológico da ordem natural. Ao contrário, o homem amplia o círculo de suas mediações e apropria-se do espaço-tempo constituído pelos objetos elaborados pela sua atividade vital mediada.

Esta mesma jovem trabalhadora precária expressou o ser/estar precário com estas palavras: “É tu não saberes o que é que te vai acontecer amanhã. É a incerteza absoluta – em termos de trabalho, as tuas competências, os teus rendimentos. É não poderes fazer compromisso nenhum.” Neste mesmo documentário outra trabalhadora precária de 42 anos, ao ser indagada sobre o que é ser/estar precário, afirmou: “Ser precário é isso: é ter um futuro continuamente hipotecado; ser precário é viver mesmo o dia-a-dia, mesmo o dia-a-dia, quase hora-a-hora. Ser precário é a impossibilidade de fazer um plano e de ter a certeza relativa que eu vou poder concretizá-lo.”

Esses vários depoimentos sobre a experiência da precariedade em Portugal expressam o binômio: “ansiedade perante o futuro” e “presentificação crônica”. Nossa hipótese é que, além de representar sintoma da desefetivação humano-genérica em virtude do estranhamento em sua forma ampliada, expressa o rompimento no plano da consciência contingente do precariado europeu (no caso em Portugal), das condições da possibilidade da história real. Aquilo que Eric Hobsbawm constatou como um fenôomeno lúgubre da nossa temporalidade histórica – “a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas” – expressa, como salientou István Mészáros, o resultado do modo reativo e retroativo de funcionamento do capital. Esta espécie de “presente contínuo” conduz ao desmanche de uma dimensão crucial do ser genérico do homem: o horizonte de expectativas de crescimento pessoal. Como nos dizia Heráclito: “A qualidade comum a toda alma é o fato de crescer”. Reinhardt Kosseleck observou: “Esperança e recordação, ou mais genericamente, expectativa e experiência – pois a expectativa abarca mais que a esperança, e a experiência é mais profunda que a recordação – são constitutivas, ao mesmo tempo, da história e de seu conhecimento, e certamente o fazem mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã.” O aparecimento do precariado e sua ampliação nas condições do capitalismo global indicam rupturas radicais no plano da consciência de classe contingente entre esperança e recordação, expectativa e experiência, que exigem a reinvenção de mecanismos sociais que vinculem nossas experiências com o passado público da luta de classe.

Por outro lado, a hipoteca do futuro não é apenas um elemento de esvaziamento da perspectiva de realização pessoal na ordem burguesa desorganizada, com a frustração das promessas da cidania salarial fordista-keynesiana, baseada na educação, emprego e consumo, mas é principalmente um sintoma candente da expropriação radical promovida pelo capital e suas mediações de segunda ordem, do conteúdo humano-genérico das individualidades pessoais num estágio tardio de desenvolvimento civilizatório, quando as possibilidades concretas de riqueza humana são obliteradas pelas misérias da “presentificação crônica”. Como diz o poeta Manoel de Barros, “Tem mais presença em mim, o que me falta”. É o que ocorre hoje com os jovens-adultos altamente escolarizados do precariado, cujo potencial acumulado de genericidade não consegue se desenvolver nas condições férreas da modernidade hipertardia do capital. Como diria Heráclito: “Viver de morte, morrer de vida”. No sistema da produção destrutiva, o precariado com seu potencial de riqueza humana morre de vida. Eis o sentido pleno do conceito de estranhamento que, de acordo com Lukács, ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho ou da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais, prodigiosamente desenvolvidos no século XX, não propiciaram o desenvolvimento da personalidade humana, mas sim, pelo contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da concentração do poder social estranhado e da manipulação de alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio.

Talvez o drama humano do precariado seja a própria síntese pós-moderna da tragédia grotesca do capitalismo histórico inscrita desde as suas origens primordiais. A diferença é que o proletarieado industrial do século XIX não possuía o potencial de riqueza humano-genérica que possui hoje os jovens-adultos escolarizados. Como contradição viva, o capital expõe nas misérias do presente, a riqueza do possível. Na medida em que são indivíduos histórico-mundiais, os jovens-adultos precários vivem a experiência contraditória da alienação radical: os pés enterrados na lama e os olhos perscrutando as estrelas.

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