Crítica do orçamento participativo
– Pelo Grupo Fim da Linha:
Em Porto Alegre, o assim chamado Orçamento Participativo (OP) ocupa o centro de debates, brigas e xingamentos, já virou ponto de parada turística de excursões de europeus, e foi o principal motivo da escolha de Porto Alegre como sede do Forum Social Mundial. O OP, implantado pelo Partido dos Trabalhadores em 1989, é um mecanismo de alocação dos recursos previstos no orçamento no município – os “cidadãos” reúnem-se e decidem o que será feito com o orçamento. Na última eleição (2004), o candidato oposicionista José Fogaça somente conseguiu derrotar o candidato do PT – Raul Pont – porque afirmou que não acabaria com o OP, ou, no mínimo, manteve posição dúbia. Esse debate entre a esquerda e a direita políticas é fundamentalmente um intercâmbio de mentiras; ambos os lados estão equivocados.
Os esquerdistas iludidos cultuam o OP como indutor da “participação”, do “protagonismo”. Ilusão, que decorre diretamente de sua incompreensão da realidade. Pois o OP está inserido na lógica do capital. A lógica do capital é sem protagonista: dinheiro deve transformar-se em mais dinheiro – toda a produção na sociedade capitalista possui esse objetivo e é por ele moldada – tanto faz se as mercadorias produzidas são alfaces ou armas de fogo. O dinheiro nada mais é do que trabalho acumulado; ou seja, o capital só é capaz de expandir-se através da exploração do trabalho para fabricar mercadorias. O aparelho estatal (estado, prefeituras, etc.) obtém seu sustento através de impostos e taxas sobre a produção e circulação de mercadorias. É somente após esse processo cegamente pressuposto que entra em cena a suposta “participação” do OP: na divisão das migalhas que sobraram da cobrança de impostos sobre a produção e circulação de mercadorias. Já à primeira vista, portanto, o suposto “protagonismo” do OP é desnudado como um processo periférico que atua somente na ponta da esteira de um processo autonomizado, baseado no trabalho e no dinheiro, que, em si, não é jamais posto em discussão. Por isso, quando Olívio Dutra resmunga que “se alguém afirmar […] que o orçamento participativo é apenas uma forma mais organizada de os pobres disputarem entre si as migalhas do capitalismo […], estará inteiramente equivocado”[1], isto soa a (in)consciência pesada, ou a um lampejo de consciência reprimido.
Justiça seja feita: o Orçamento Participativo é um bom instrumento de gestão do dinheiro estatal – não é à toa que instituições financeiras internacionais o elogiam e recomendam. Pois a eficiência da administração do dinheiro é potencializada pelo princípio da concorrência. Nas reuniões do OP, o que se vê é o princípio da concorrência em ação – como o bolo não dá para todos, decide-se tudo na disputa. Do ponto de vista da lógica imanente do dinheiro, o OP é um mecanismo modernizador: substitui, ao menos na teoria, as trocas de favores personalizados e clientelistas por um mecanismo impessoal de mercado. Isso pode causar calafrios nos apologistas de esquerda do Orçamento Participativo, mas o OP, caso realmente funcione segundo seus preceitos, é um bom instrumento capitalista de gestão. Daí já se depreende o atavismo de certos críticos de direita do OP. Ao aceitar o discurso de que o OP é de esquerda, combate-o, sem perceber a eficiência capitalista do instrumento criticado, e pior, muitas vezes com o interesse implícito ou explícito de retornar à forma clientelista e praticamente pré-moderna de gestão do dinheiro. A esquerda mente, e a direita rebate com uma nova mentira, em um espetáculo ideológico no qual a verdade é soterrada.
Como se não bastasse a falsa participação do OP, no qual o que realmente é fundamental não é discutido, a própria base pressuposta atualmente está em crise. Pois, após a revolução microeletrônica, o trabalho se tornou supérfluo, com o advento de máquinas e equipamentos automatizados – em suma, o combustível do dinheiro, o trabalho, tornou-se supérfluo – o emprego torna-se raro. Produz-se enorme quantidade de mercadorias com poucos produtores – ou seja, com poucos compradores; o ciclo da valorização do dinheiro entra em colapso. Assim, a crise da valorização implica na crise das finanças do Estado, pois este se financia taxando direta ou indiretamente processos de valorização bem-sucedidos. Assim, o “bolo” do OP se tornará cada vez menor, para uma demanda cada vez maior, e as reuniões do OP tendem a assumir cada vez mais o mesmo asselvajamento das relações sociais em geral, transformando-se em renhidas disputas por migalhas – e mais, legitima-se a ausência de obras e serviços importantes, resultado da insuficiência orçamentária, com um cínico “foi a população que decidiu”. Assim, o OP revela-se como um aparelho de administração de miséria, e ainda consegue a proeza de imputar a culpa às vítimas.
Portanto, que se abandonem as ilusões: o OP não apenas é um aparelho de administração da miséria orçamentária, mas também da miséria da vida em sua totalidade. A verdadeira participação depende da abolição da lógica do dinheiro e da separação. A lógica do dinheiro impõe a separação dos produtores de seus produtos e dos produtores entre si, e portanto impossibilita a comunicação, a participação, a autonomia. Separa os produtores de seu produto porque a produção não é feita para a satisfação das necessidades humanas, mas para a acumulação de capital. Separa os produtores entre si pela divisão social do trabalho, pela propriedade privada e pela concorrência. Onde a vida é regida pelo dinheiro, não há comunicação. A verdadeira participação só vai ocorrer quando a produção e reprodução da vida em sua totalidade for participativa, com a abolição da separação dos produtores de seus produtos e destes entre si, com o advento da comunicação autônoma, com a abolição do dinheiro, da mercadoria, do trabalho, do mercado e do Estado.
Fonte: Fim da Linha, outubro de 2005 (blog desativado: http://www.fimdalinha.1br.net/)
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