A Emancipação Política e a defesa de direitos

Por Sérgio Lessa:

[excerpts]

“O “império” da “cidadania” e do “Estado político”, ao emancipar politicamente a propriedade privada burguesa, “despojou o mundo inteiro” (“tanto o mundo dos homens como a natureza”) “de seu valor peculiar”, e o converteu em um “universal” abstrato (abstrato, no sentido que cancela o “valor
peculiar” de todas as coisas) que é o “dinheiro”. Desse modo, com a emancipação política, o “dinheiro” se tornou a “a essência do trabalho e da existência do homem”. Enquanto universal que cancela o “valor peculiar” de cada indivíduo e de cada produto do trabalho, o “dinheiro” assume a função social de “essência humana”, uma essência “alienada” que o “domina” e a qual ele “adora”. A emancipação política, ao converter o dinheiro na essência alienada do homem, “num só e mesmo ato” (Marx, 1969:50) abstraiu os “indivíduos concretos, historicamente determinados” (Lukács) em cidadãos e, igualmente, projetou a generalidade humana, no Estado “político”. Este complexo de alienações que articula como determinações reflexivas a propriedade privada burguesa, a cidadania e o Estado “político” é o que deverá ser superado pela emancipação humana.”

(…)

“Na “sociabilidade burguesa”, o indivíduo é reduzido à mísera abstração de cidadão e, o gênero humano, à não menos pobre “soberania imaginária”, “generalidade irreal” (Marx, 1969:26-7; Marx, 1956:354-5) do Estado “político”. Propriedade privada burguesa, Estado “político” e “cidadania” apenas possuem existência história real enquanto partes de um mesmo todo, isto é, a sociabilidade regida pelo capital. Só existem na mútua relação um com o outro, não possuem qualquer existência fora desta “determinação reflexiva” (da qual a propriedade privada é o momento predominante). Tal como não podemos ter Estado “politico” sem cidadania, não podemos ter cidadãos sem propriedade privada burguesa, nem esta sem o Estado “político”. Por isso o indivíduo burguês é, ao mesmo tempo, “cidadão” na esfera do “idealismo do Estado” (Marx, 1969: 49) e, enquanto pessoa concreta, o “burguês” que é guardião da sua propriedade privada.”

(…)

“A emanciapação política, por isso, não é sinônimo de democracia — e cidadania não se contrapõe às diferenças reais “dos indivíduos concretos historicamente determinados” (Lukács), diferenças estas que são, no limite, fundadas pela propriedade privada. O que significa que cidadania e miséria, cidadania e exploração do trabalho pelo capital, cidadania e desemprego, cidadania e ditadura são rigorosamente compatívies. A plena “cidadania” é o indivíduo burguês, seja ele proletário, desempregado ou capitalista, seja ele parlamentar da democracia sueca ou um prisioneiro político em Guantânamo. O Estado é burguês precisamente porque é uma mediação para o predomínio do capital sobre a reprodução social. E ele não é mais ou menos burguês – isto é, “político” – pelo fato de ser uma ditadura ou uma democracia.”

(…)

“A estratégia de radicalizar a emancipação política para superar a “sociedade burguesa” derrota-se a si própria. A radicalização da emancipação política conduzirá a nada mais que uma sociedade mais radicalmente emancipada politicamente o que significa, sem maiores delongas, em uma regência mais radical da propriedade privada burguesa sobre a reprodução social. A emancipação humana não é a radicalização da emancipação política, mas sua negação mais pura e frontal, sua negação mais radical possível na história: sua superação.

Ou, para trocar em miúdos, na luta contra a presente onda histórica de destruição dos “direitos”, o o horizonte estratégico adequado não pode ser o luta “por meio do Estado (…)” (Marx, 1969:24) pela “manutenção” dos “direitos”, mas sim a luta estratégica por uma sociabilidade na qual os “direitos” e a propriedade privada serão superados tal como o Estado e o casamento monogâmico. E o nome científico desta sociabilidade é o comunismo. A única defesa eficaz dos trabalhadores ameaçados pela forma neoliberal do Estado “politico” está na luta pela superação da “sociedade burguesa” e, portanto, uma luta necessariamente por fora e contra o Estado “político”. Daqui a insistência de Mészáros na importância das lutas extra-parlamentares.

Por isso, a estratégia de radicalizar a emancipação política, de radicalizar a cidadania e o Estado “político” como mediação para se chegar à emancipação humana tem conduzido, nas últimas décadas, ao estreitamento do horizonte de luta às esferas institucionais e parlamentares, com todas as conseqüências que estamos colhendo no presente. Entre elas, o fato de que, em um momento de crise estrutural do capital, os “emancipadores humanos” não conseguem encontrar outra alternativa política senão, entra ano e sai ano, optar pelo “menos pior”. De “menos pior” a “menos pior” vamos do desastre à tragédia — e deixamos de alargar os horizontes do possível. Afinal, não seria esta a tarefa dos revolucionários: alargar as fronteiras do possível? Qual pode ser o horizonte histórico de uma estratégia centrada no Estado “político” – aquele que “pressupõe” a propriedade privada burguesa – para se superar a propriedade privada, senão a manutenção “do contexto do mundo atual.”(Marx, 1969:28)?

Há décadas assistimos ao predomínio estratégico da luta “democrática” pela defesa da democracia e da cidadania, por dentro do parlamento e das outras instituições do Estado. Assistimos à “redemocratização” do aparato ditatorial sem que ele fosse, de fato, removido; passamos pela Assembléia Nacional Constituinte com todos os seus avanços na legislação, sem alterar o fundamental e muito do secundário da exploração dos trabalhadores; “evoluímos” para a eleição do melhor partido reformista que os reformistas jamais poderiam sonhar, com uma base operária e sem os vícios do movimento comunista tradicional, o PT, e assistimos apenas à reafirmação da “miséria brasileira” (parafraseando Marx que falava da “miséria alemã”). Tantos anos, tantas lutas, tantas “esperanças” não correspondidas, já não deveriam ser suficientes para superarmos as ilusões e reconhecermos, na teoria e na prática, a determinação histórico-ontológica predominante no presente? Qal seja, que a obra atual da humanidade está na superação do Estado “político”, do “dinheiro” e da “sociedade burguesa” e que, portanto, nem será no horizonte do “político”, nem da “sociedade burguesa”, nem do mercado que encontraremos as mediações históricas que nos possibilitarão acumular forças para a revolução comunista? Não está mais do que na hora de reconhecermos o que Marx já apontava em 1843: trata-se, agora, da emancipação humana?”

(…)

“Não devemos nos iludir. Hoje, o Estado “político” é o terreno mais apropriado para a destruição dos direitos democráticos, não o contrário. Ir para além do “contexto atual” é a única alternativa que resta aos revolucionários para resistir à crescente destrutividade do capital. É este o sentido fundamental da retomada da estratégia ofensiva socialista proposta por Mészáros: enfrentar a intensificação das alienações do capital com uma clara e definida estratégia socialista, que coloque a questão da propriedade privada no seu núcleo. Isso significa não mais privilegiar a participação e a resistência nos terrenos estatal e governista, no parlamento e nos órgãos públicos, nas instituições da “sociedade burguesa” e de seu Estado “político” e deslocar o centro de gravidade para o terreno extra-parlamentar. Como fazer isso, com que mediações táticas implementar essa estratégia, são questões que não cabem nessa conclusão e nem poderiam ser resolvidas fora da especificidade conjuntural de cada momento. Todavia, sem esta mudança de horizonte histórico, não faremos outra coisa senão nos perdermos nas entranhas das próprias forças alienadas que nos devoram.”

Leia a íntegra do artigo aqui, publicado originalmente na edição de junho de 2007 da Revista Serviço Social e Sociedade

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